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Gaúcho 70: Mojica

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Roveda iniciou sua carreira trabalhando com José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ao todo, o técnico sulista colaborou em 13 longas-metragens do realizador. Aqui ele comenta algumas passagens o trabalho no filme O Estranho Mundo de Zé do Caixão.


O Luiz Sérgio Person estava na fita e ele levou dois caras, dois alunos dele pra fazerem estágio conosco lá. Foram o Enzo Barone que ficou fazendo estágio como assistente de produção e o Silvinho também ficou como assistente de câmera comigo. Silvinho ficou sócio do Enzo Barone. Anos depois, eles criaram a maior produtora de filmes publicitários, tal. Levaram pra esse lado e acho que ficaram até ricos.


No Estranho Mundo, o personagem do Mojica tenta provar instinto superior a Razão dizendo que em determinado momento tudo se sobrepõe a Razão. Esse filme não teve grandes coisas, episódios inusitados. O roteiro era do Lucchetti. A equipe a mesma. Estava eu, Mário Lima fazia produção, a Nilce fazia continuidade. Todos começando, de experiência mesmo tinha o Zé Carioca. 


O assistente de câmera não tem acesso, ascendência sobre o eletricista, maquinista. Maquinista ainda tem um sincronismo porque ele opera o travelling, assistente de câmera faz correção de foco. Então, existe um diálogo entre esses dois profissionais. Agora eletricista e outras funções não. Praticamente nada. Como com os atores, repetir um movimento pro cara fazer ensaio de zoom, tal. Hoje tem eletrônico, é outra forma. Mas sempre quando tinha que se dirigir aos atores de preferência ia pelo diretor ou pelo assistente de direção. “Precisa de mais um ensaio”, profissional, o ator profissional sabe disso, sabe que a pessoa que está pedindo pra fazer tem autoridade pra isso. Precisa desse apoio, relacionamento. Então, não teve grandes coisas assim, episódios, pessoal zoava, tinha zoeiras dentro da sinagoga. Tinha o Salvador do Amaral, Pedrão Kopchak. Salvador era um cara muito brincalhão, aprontava brincadeiras.

Gaúcho 70: diretor de produção

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Foram diversas funções e cargos em produções cinematográficas. Gaúcho comenta sobre as atividades do diretor de produção, falando de sua experiência no filme A Virgem e o Machão.


Praticamente fui eu que dirigi a produção dessa fita feita em Ilhabela. Mas quem assinou foi a Georgina e o Augusto. Então, ficaram eles e eu fiquei assistente de câmera, assistente de direção, assistente disso, assistente daquilo. Levantava ás quatro horas da manhã para ir pegar pão em São Sebastião. Naquela época, não existia nem padaria na Ilhabela. Pra ter café da manhã, as pessoas tinham que ir até o continente. Acho que o Cervantes percebeu que eu ia topando as paradas mais cabeludas. Por isso, passei a dirigir produção de filmes como Como Consolar Viúvas, Noite em Chamas. Mas um que deu muito trabalho foi O Menino da Porteira, eu carreguei aquele filme nas costas. Eu e o Gonzaguinha (Luiz Gonzaga dos Santos) como assistente de direção nos empenhamos muito para que aquele filme fosse finalizado.


Olha, tudo que eu fiz tive empenho. Mesmo pegando filme lá do Nelson Teixeira Mendes, aquelas coisas bem... Porque de onde você menos espera pode sair um filme interessante. E aconteceu de onde menos esperava sair um filme interessante. Onde você ás vezes põe muitas fichas numa proposta, acaba não dando tão certo...como Noite em Chamas. Tinha um puta de um elenco, a produção foi feita no capricho e não virou assim. O outro filme do Jean Garrett que tinha tido uma renda fantástica foi o Excitação. Esse era um filme com um elenco pequeno e de produção mais barata. Mas o Excitação deu muito mais resultado na bilheteria. E era o mesmo diretor.


Financeiramente sim. O salário do diretor de produção era maior que o assistente de câmera. Mas era mais ou menos o mesmo nível dentro da equipe técnica. Um dos filmes que mais deu trabalho nessa função foi mesmo o Noite em Chamas. Nessa produção, eu já era um homem de confiança do Augusto Cervantes e por isso trabalhei nessa ocupação. Tivemos muitos conflitos porque era um elenco grande, muitos atores vinham do Rio inclusive. Quando tem muita gente sempre a vaidade acaba falando mais alto, né?

Cine Faroeste exibe documentário inédito sobre o cinema da Boca

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O documentário Boca Livre: Histórias de Um Cinema Libertário recupera a trajetória de personagens que trabalharam no cinema paulista entre as décadas de 1960 e 80. O média-metragem assinado pelo diretor Ricardo Corsetti será exibido gratuitamente no próximo sábado (dia 21) ás 14 horas no Cine Faroeste (rua do Triunfo, 305, Luz). Entre os entrevistados do filme estão musas como Nicole Puzzi, Noelle Pine e Vanessa Alves e diretores como Clery Cunha e Luiz Gonzaga dos Santos. Segundo o release, o documentário “visa destacar o fato que o cinema produzido em São Paulo (...) mostrou-se muito mais ousado do que o cinema brasileiro contemporâneo (não sujeito a Censura) no sentido de abordar de forma muito mais “livre” e criativa questões relacionadas ao sexo e, até mesmo a situação política do Brasil”. A conferir.

Jorge Loredo (1925-2015)

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Jorge Loredo não foi um ator dedicado ao cinema. Seu trabalho na televisão é muito maior. No entanto, é interessante notar sua presença em comédias populares como Sai Dessa, Recruta e A Espiã Que Entrou Numa Fria. Depois ele teve uma série de trabalhos interessantes com Sganzela na fase Belair. Essa talvez seja a parte de sua filmografia mais lembrada. Também teve um papel memorável em Tudo Bem de Arnaldo Jabor fazendo um dos conselheiros do personagem de Paulo Gracindo. Em Chega de Saudade, também vemos Loredo num papel que não é cômico. O ator e cineasta Selton Mello era seu fã e por isso chamou ele nos dois longas-metragens que dirigiu. Em sua trajetória, o humorista Loredo desenvolveu um personagem especial dentro da televisão brasileira. Todos nós conhecemos alguma espécie de Zé Bonitinho. Seja no trabalho, no bairro, na nossa vida cotidiana. Esse tipo está no imaginário coletivo. Por isso, seu personagem será sempre lembrado.

Mazzaropi 103 anos

Três anos sem Adriano Stuart

Cláudio Cunha (1946-2015)

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Era uma noite de quarta ou quinta-feira. O Palmeiras jogava contra o Marília no antigo Parque Antártica. Mas eu tinha outro compromisso: tinha fechado com o amigo Gabriel Carneiro de fazer uma matéria pra Zingu com o cineasta Cláudio Cunha. Ele morava na rua das Palmeiras, em Santa Cecília, pertinho do antigo Lord Hotel. Na mesma semana, ele ia embora daquele imóvel. Levei um gravadorzinho pequeno, Cláudio me recebeu de shorts, sossegado, camisa aberta. Carregava uma garrafa de vinho. 


- Vamos lá, pode perguntar.


Devo ter gravado umas três horas em que ele recordou suas passagens no cinema e dentro de sua carreira. Não fugiu de nenhuma pergunta. Sabia que era um veículo pequeno, mas Cláudio parecia não dar atenção a isso. Aí eu comecei a tomar vinho com ele.


- Continua perguntando. Eu falo tudo.


Mas a pilha acabou, as fitas estavam cheias de histórias. Mas Cláudio não parou de falar. Me contou sobre como ele tinha sido adotado pelo Átila Iório no seu começo de carreira. Pra quem não sabe: Iório foi um dos grandes atores do Brasil, foi sogro do Dedé Santana inclusive. Cláudio me contou de sua amizade com Marcos Rey. Das musiquinhas de duplo sentido que fazia com um figurão da televisão. Do seu encontro com Jean Garrett um pouco antes da morte deste. Me contou de como conviveu com Tony Vieira e a amizade deles sacramentada quando ainda eram figurantes do Mazzaropi. A ex-mulher do Cláudio tinha feito frango a passarinho. Eu adoro esse prato. Pois bem, já era quase madrugada e a gente comeu o frango e tomamos um porre danado de vinho. Ele tinha umas filhas crianças e elas começaram a pintar o rosto do pai com várias cores. Como eu estava lá, acabaram me pintando também. Sai da casa do Cláudio não somente com a entrevista feita. Tinha jantado um belo frango a passarinho, tomado um porre de vinho e tinha o rosto pintado de várias cores. Mesmo assim, consegui pegar um táxi e chegar em casa. Não tive tempo para dizer ao Claudião o grande cineasta que ele era. E o quanto eu admirava ele. Com toda certeza, Cunha era um dos melhores da Boca do Cinema, autor de obras-primas como Amada Amante e Snuff. Do belo drama khouriano como em O Gosto do Pecado. E do engraçadíssimo Rebu. Grande cara, grande pessoa, ser humano acima da média. Dizer que fomos amigos seria me aproveitar dessa triste notícia de hoje. Mas Cláudio Cunha foi um dos grandes artesãos da Boca paulista. E uma figuraça. Lamento não ter sido tão próximo a ele. Mas Claudião, tenha certeza: você foi um dos grandes cara. Quando falarem da rua do Triunfo seu nome sempre estará lá.   

PARA COMPRAR OS MEUS LIVROS

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O Coringa do Cinema (2013, 160 páginas):
Virgílio Roveda foi um dos técnicos mais atuantes do cinema paulista. Iniciou a carreira como figurante. Depois prosseguiu como eletricista, assistente de câmera, iluminador e diretor de fotografia. Paralelamente atuou como assistente de direção, fotógrafo de cena, direção de produção e produtor. Colaborou na realização de mais de 60 longas-metragens nacionais. Este livro conta com a trajetória deste coringa do cinema.

Dossiê Boca: personagens e histórias do cinema paulista (2014, 103 páginas):
Na Boca paulista, entre os anos 70 e 80, o sonho de fazer cinema virou realidade para muita gente que não tinha dinheiro nem educação formal. Suas histórias estão nesse livro. Histórias de um peão de boiadeiro que conseguiu fazer seu próprio filme sobre os rodeios, de um faxineiro de cinema que se tornou cineasta, de atores que eram contratados no mesmo bar onde comiam fiado ou de um garçom que se tornou o maior montador de filmes da história do Brasil.

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Adultério, segredos e transgressões

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Um rolê todo sinistro. É nessa situação que o personagem Vicente de Magnífica 70 se envolve. O cara consegue ser censor da Ditadura Militar e diretor de filmes eróticos ao mesmo tempo. A série é a primeira produção de época da HBO brasileira e passa-se nos bastidores da Boca do Lixo, polo cinematográfico paulista entre as décadas de 1960 e 1970.

Aquela época foi de um período de efervescência cultural e política. Tudo isso está em Magnífica 70. Mas não é só isso. A trama possui uma narrativa central que parece inspirada nas peças do dramaturgo Nelson Rodrigues. Vicente é casado com Isabel (Maria Luisa Mendonça), mas não consegue esquecer a paixão que teve pela irmã caçula da esposa (Bella Carnero). Tudo ia bem na vida do protagonista: o emprego acomodado e o casamento monótono faziam parte da sua rotina. Até que ele assiste ao filme A Devassa da Estudante, protagonizado pela atriz Dora Dumar (Simone Spoladore). A incrível semelhança entre Dora e a antiga paixão irá enlouquecer o censor. O protagonista irá ver-se envolvido numa trama recheada de adultério, segredos e transgressões.

A série possui treze episódios na primeira temporada. Cada parte aborda os bastidores de uma parte da produção cinematográfica. O rigor com a reconstituição de época chama a atenção. Outro aspecto interessante são os personagens. Todos fogem dos estereótipos comuns das telenovelas cujos enredos possuem bonzinhos e mauzinhos. Os protagonistas de Magnífica 70 são personagens profundos que ocultam seus dramas e sonhos pessoais. O mundo lá fora é cruel e medonho.

Todos vão trabalhar com cinema buscando dinheiro fácil. As produções da rua do Triunfo tinham um público certo e precisavam dar lucro para ter continuidade. Mas os personagens da série acabam gostando do mundo da sétima arte. Isso era muito comum na Boca paulista: anônimos tornavam-se atores, produtores e até diretores da noite para o dia. Uma parte significativa do cinema brasileiro recebe uma abordagem á sua altura. Cada um deve conferir e tirar suas próprias conclusões.



Ah sim: Magnífica 70 estreia no HBO Brasil no próximo domingo (dia 24) ás 21h. 

Publicado originalmente no site da Vice Brasil em 22 de maio de 2015  

Nelson 96 no VSP em junho e julho

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Em junho deste ano, o cantor Nelson Gonçalves completaria 96 anos de vida. Para homenagear este nome notável da nossa canção popular, o VSP irá realizar um especial durante dois meses sobre este artista. Todo sábado o leitor poderá ler alguma matéria sobre esse personagem único da nossa canção.Além do resgate, o autor também irá ver posts especiais sobre o gigante da música popular.

Nelson Gonçalves lança coletânea

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Nelson Gonçalves lança coletânea


Fernanda da Escóssia
Da sucursal do Rio

O cantor Nelson Gonçalves, 76, chega aos 54 anos de carreira com um desejo: gravar “Detalhes” de Roberto Carlos, no disco que fará no ano que vem com canções inéditas em seu repertório.

Sua gravadora, a BMG-Ariola, lançou nesta semana um pacote com três CDs de canções remasterizadas. “O Mito” faz uma síntese da carreira de Nelson Gonçalves, desde “Sinto-me bem”, de 1941, até “Naquela Mesa”, que Nelson gravou em 1990 com o violonista Raphael Rabello.

Ex-garçom, ex-lutador de boxe, ex-viciado em cocaína, Nelson começou a cantar aos cinco anos, acompanhando o pai nas feiras de São Paulo. Foi recusado por várias rádios, até que a antiga RCA, hoje BMG-Ariola, o contratou.

“Disseram que eu seria o maior cantor do Brasil”, conta, sem dizer se acha que cumpriu a previsão da gravadora. Continua fazendo shows e diz que não ficou rico.

Tem certeza de que é mais fácil ser cantor hoje do que no seu tempo. Ex-gago, venceu a gagueira cantando e diz que os cantores de hoje não sabem cantar.

Hoje, Nelson Gonçalves ri ao lembrar o episódio em que Ary Barroso o mandou embora de uma rádio, afirmando que ele seria melhor garçom do que cantor. Nesta entrevista, ele relembra estas e outras histórias de sua carreira.

Folha- O que o senhor achou do pacote de CDs relançados por sua gravadora?

Nelson Gonçalves- Ainda não ouvi, sabe? Eles querem relançar tudo, ás vezes fico meio pessimista. É CD demais. Estou muito chateado porque um ladrão entrou na minha casa e levou mais de metade da minha coleção de discos, desde o primeiro que eu lancei. Pelo menos era um ladrão musical.

Folha- Como o senhor começou a cantar?

Nelson-No colégio. A professora sempre me chamava para puxar o hino. O problema era que, na hora do recreio, lá vinham os colegas me chamar de carusinho. Até que desisti e disse para o meu pai. Ela brigou comigo porque eu tinha me recusado a cantar o hino da minha pátria e me levou para a feira. Eu, com cinco, seis anos, subia num banco e cantava “A Maladrinha”: “Oh linda imagem de mulher que me seduz...”. Era um sucesso.

Folha- É verdade que o senhor foi recusado por muitas rádios da época?

Nelson-Eu era garçom no bar do meu irmão e lutava boxe. Comecei a cantar na Rádio São Paulo, mas vim tentar a vida no Rio. Fui na RCA, em cinco ou seis rádios. Mandavam que eu cantasse, eu cantava e não gostavam.
Na Rádio Transmissora, Ary Barroso pediu que eu cantasse. Perguntou o que eu fazia em São Paulo, e eu disse. Ele me falou: “Olha, meu filho, volta para São Paulo e vai lutar boxe ou ser garçom, porque tu não sabes cantar”. Até que consegui gravar um disco com duas canções e fui de novo à RCA, aí me aceitaram. Disseram que eu seria o maior cantor do Brasil.

Folha- O senhor acha que é?

Nelson-Não sei. Não sou melhor do que ninguém. Quando comecei a cantar, diziam que eu imitava o Orlando Silva, meu grande ídolo. Aí baixei minha voz um tom e consegui me diferenciar. Ser cantor naquele tempo era mais difícil.

Folha- O senhor acha que os cantores de hoje não sabem cantar?

Nelson-Não é que não sabem, mas eles colocam as sílabas tônicas nos lugares errados, dividem as palavras de forma errados, dividem as palavras de forma errada, não inspiram. Você vê esse tal de Falcão. Isso lá é cantor? Ninguém nem entende o que ele diz, as músicas não significam nada. Mas temos hoje grandes cantores, como Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Fagner, Fábio Júnior...

Folha- O que há de verdade no seu envolvimento com drogas e bebida?

Nelson-Nunca bebi. Mas já usei tóxico. Fui dependente de 58 a 66, mais ou menos. Cheguei a ser preso por isso, levei tiro de traficante, mas dizia que era pedrada porque nesse mundo ninguém entrega ninguém. Fiquei mais de dois anos sem gravar, meses depois deixei o tóxico. Hoje só fumo.

Folha- Fumar não prejudicou sua voz?

Nelson-Não sei. Fumei uma carteira de cigarro por dia, por muito tempo. Quando meu pulmão reclamava, o médico dizia que era do cigarro. Há três meses tive pneumonia, mas fiquei bom. Hoje fumo, no máximo, quatro cigarros por dia.


Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 21 de dezembro de 1995

Nelson Gonçalves, boemia no Planalto Central

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Nelson Gonçalves, boemia no Planalto Central
                                          

O cantor cansou da violência. Quer tranquilidade, serenatas madrugada adentro, uma cachacinha. Escolheu Sobradinho no Distrito Federal, para morar.
                                       
Por Tânia Fusco

BRASÍLIA- Foi amor à primeira vista. Dia cinco o cantor Nelson Gonçalves fez um show no colégio La Salle, de Sobradinho, bucólica cidade satélite da Capital Federal, reduto de seresteiros. Encantou-se e voltou 10 dias depois. Repetiu a seresta, caiu na noite e decidiu viver em Sobradinho “para fazer serenata em janela de mulher bonita e varar madrugada cantando e bebendo na rua”. A boêmia muda de endereço: vem para o Planalto Central, na cidade que, plagiando a música, Nelson define como “divina e graciosa”.

“Chega de neurose e medo. Eu quero paz de criança dormindo”, diz, com a licença de Dolores Duran, para explicar o que motiva a mudança. “Quero esquina, cadeira na calçada, amizade dos vizinhos, respeito humano, carinho, muito amor e alguma cachaça”, insiste Nelson que vive no Rio desde 1940. “O Rio era outro. Havia troca, entrega, paixão, sinceridade. Não gosto de viver isolado, com medo. O povo de Sobradinho – a melhor gente que encontrei nos últimos tempos – será meu parceiro e guardião”.

E “a mulher que floriu seu caminho” – Maria Luiza, com quem tem um casamento de 25 anos – compreendeu e vem junto. Nelson, que procura casa para comprar, espera passar o réveillon já instalado em Sobradinho. “Olha, não estou mudando para Brasília, não. Vou é em Sobradinho. Brasília é fria, impessoal, não tem gente na rua, não tem esquina. E tem assalto e muito poder. Disso eu quero distância”.

“Cansei dos meus erros, pecados e vícios”, diz a letra de um dos seus sucessos, Boneca de Trapo. Nelson, quase 50 anos de vida artística, 60 milhões de discos vendidos, 310 compactos, 115 LPs e 172 discos de rpm gravados, cansou da cidade grande. “Chega de sufoco”, proclama e revela: “Tenho 69 anos muito bem vividos. Cabeça de 20 e poucos. Coração de adolescente. Vou levar para Sobradinho o melhor Nelson Gonçalves. Um homem que tem confiança no que é, no que pode, no que quer. Quero é muito amor, muita paz, alegria de viver”.

Nelson é gaúcho de Livramento. Mas não tem saudade da terra natal. “Essa mudança não é inspirada em saudosismo. É redescoberta mesmo. Ai eu vou ficar tranquilo, no coração do Brasil, perto de tudo. Longe o suficiente do poder e da neurose. Vou fazer um disco dedicado ao amor, ao renascimento dessa mania gostosa de amar. Não é bom demais”.

Nelson deixa a casa em Itaipu, em Niterói, onde vive e o apartamento da Barra da Tijuca, onde “passeia de vez em quando”. Traz a mulher, a filha caçula, de 16 anos, o violão e “pequenas paixões” para recomeçar a vida em Sobradinho, que prepara um superbaile da saudade para recebe-lo. “Aqui ele será nosso rei, amigo precioso, vizinho mais ilustre”, garante Robson Salazar, diretor social da Sociedade Desportiva Sobradinho (Sodeso), maior clube da cidade, que toda sexta-feira faz serestas de varar madrugada.

“A Petrópolis do DF”, assim é chamada pelos moradores

Com pouco menos de 50 milhões de cruzados Nelson Gonçalves poderá comprar “casa grande com jardim e piscina” que procura em Sobradinho, a cidade-satélite de 90 mil habitantes, muitas casas e poucos prédios. Vai encontrar tranquilidade.

No ano passado, a única delegacia de polícia da cidade – o 13 DP – registrou 2.495 ocorrências policiais, incluindo 1.436 acidentes de trânsito, a maioria de pequenas proporções. No Distrito Federal inteiro – plano-piloto e oito cidades-satélites – foram registradas 45.913 ocorrências policiais.

Sobradinho, que tem esse nome por conta do riacho que banha a cidade – o rio Sobradinho – nasceu em 13 de maio de 1960. Fica a 22 km do plano-piloto, na área mais alta do Planalto Central e, por isso mesmo, é chamada por moradores apaixonados de “Petrópolis do DF”. Não tem vida própria. É uma cidade dormitório com área de 12 quilômetros quadrados. Suas áreas mais nobres são as quadras oito e seis, onde Nelson procura uma casa. Ali terá como vizinho o principal ponto de encontro dos seresteiros locais – o bar Coisas do Norte.

A cidade tem dois clubes. Mas um deles, com 4.500 sócios, é o preferido. A Sociedade Desportiva Sobradinhense. Lá, em janeiro, será realizada a festa-seresta-recepção para Nelson Gonçalves. “Vamos juntar todos os apaixonados e seresteiros desse Planalto Central”, promete Róbson Salazar, diretor social do Clube, que já corre lista para a festa do boêmio.

Publicado em O Estado de São Paulo em 1 de dezembro de 1988

Nelson Gonçalves regrava os anos 80

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 Nelson Gonçalves regrava os anos 80


FABIO SCHIVARTCHE
Da Reportagem Local

Aos 78 anos e 78 milhões de discos vendidos, o cantor Nelson Gonçalves assume de vez uma postura pop e, sem abrir mão de seu estilo dor-de-cotovelo, lança um disco com regravações de rock e MPB dos anos 80.

O disco “Ainda É Cedo”, o 128º de sua carreira, chega hoje ás lojas com uma tiragem de fôlego para quem faz sucesso há mais de 50 anos: 500 mil cópias.

Produzido por Robertinho do Recife, o álbum revisita músicas que foram sucesso nas vozes dos Paralamas do Sucesso (“Meu Erro”), Lobão (“Me Chama”), Rita Lee (“Caso Sério”), Cazuza (“Faz Parte do Meu Show”) e Legião Urbana (“Ainda é Cedo”) etc.

“Quis gravar essas músicas para fazer uma ponte entre o passado e o futuro”, disse Nelson á Folha, anteontem, na festa de lançamento do novo disco.

“Ainda É Cedo”, não é a primeira incursão do cantor no meio pop brasileiro. Em 1987, ele dividiu os microfones com Lobão na valsa “A Deusa do Amor”, incluída no disco “Nós”.

A atualização do repertório, no entanto, não mudou seu estilo de cantar. As palavras continuam soando com todas as sílabas. “O esmero na pronúncia é uma de minhas marcas”.

Para os fãs do Nelson da era dó-de-peito, quando ele dividia as atenções com Orlando Silva e Francisco Alves, o cantor manda dizer que não mudou seu estilo.

“Não fiz um disco de rock, apenas mudei o repertório de canções escolhidas, dando o meu tratamento pessoal ás músicas”, afirmou o cantor.

Tratamento pessoal, nesse caso, é transpor, para as linguagens do bolero e do samba-canção, versos como os de Herbert Vianna, em seu ska “Meu Erro”.

“O segredo é saber achar a dramaticidade na letra da música”, disse Nelson, gaúcho de Livramento, que, mesmo com a idade avançada e a saúde debilitada, sabe levar a vida de bom humor.

Malandro
Goma no cabelo e, como todo bom malandro das antigas, vestido de gravata e paletó, Nelson, um ex-boxeador profissional, relembrou na entrevista seus dias na prisão.

Ele esteve preso na Casa de Detenção, em São Paulo, por um mês, por porte de cocaína, em 1966.

“Cheguei à prisão e logo dei um soco na cara do preso que mandava no local. Disse que dali em diante nós dois seríamos os chefes, e todo mundo passou a me respeitar”, disse.

Segundo ele, o nome do novo disco é uma provocação para as pessoas que pensavam que sua carreira havia acabado no ano passado, quando ficou dias internado no hospital por causa de problemas respiratórios. “Quis mostrar que ainda é cedo para parar de cantar”, afirmou.

O novo disco tem também músicas de Marisa Monte e Arnaldo Antunes (“De Mais Ninguém”), Caetano Veloso (“Você é Linda”), Pino Daniele (“Bem Que Se Quis”), Herbert Vianna e Paula Toller (“Nada por Mim”), João Donato e Abel Silva (“Simples Carinho”) e Luiz Melodia (“Estácio, Holly Estácio”).

O cantor planeja excursionar para divulgar o novo disco, a partir de janeiro. Serão dois meses viajando pelo Brasil para, depois, mostrar o seu trabalho nos Estados Unidos e Japão.

Além das viagens, Nelson prepara o repertório de seu 129º disco para 98, só com músicas inéditas de sua autoria.

ELE

“Na minha turma, eram mais ou menos uns 50 que cheiravam cocaína. Desse caras, 49 morreram, e só fiquei eu”.

“Quero ser cremado para ninguém fazer xixi na minha lápide”.

“Bebo e fumo. Quem cuida da minha voz é Deus”.

“Nem pagando ponho óculos escuros. Isso é coisa de bicha!”.

OS OUTROS

“Maravilhoso. Foi a melhor regravação da música que já ouvi”.
Dado Villa Lobos, ex- Legião Urbana, autor da música “Agora É Cedo”, regravada por Nelson Gonçalves.

“Foi uma prova de sua generosidade, uma abertura dele ao que os mais jovens estão fazendo. A canção ficou adequada ao canto do Nelson, muito enloquente”.
Arnaldo Antunes, um dos autores da música “De Mais Ninguém”, incluída no disco de Nelson Gonçalves.


Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 26 de setembro de 1997

Luiz Castillini (1944-2015)

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Estive pessoalmente uma única vez com Luiz Castillini. Era senhor um pequeno, magricelo, simpático. Meio pessimista talvez. Fumava um cigarro atrás do outro na sua casa na Mooca, zona leste de São Paulo. Não gostava de dar entrevistar nem de aparecer muito. Mas foi um nome de destaque na Boca paulistana. Seus filmes flertavam com o cinema de gênero, tinha notadamente talento para fazer filmes de terror com orçamentos pequenos. Nascido em Barretos, iniciou sua carreira com projecionista e trabalhou em televisão antes de chegar ao cinema. Começou na Boca trabalhando com roteiros. Lembro que tinha grande admiração por Tony Vieira e com Ody Fraga. Foi casado com a atriz e musa Patrícia Scalvi, um dos grandes nomes da rua do Triunfo. Seus trabalhos de direção eram interessantes e um chegou a participar de um festival de cinema. Segundo ele, fizeram tudo para que seu filme não obtivesse nenhuma premiação. Por puro preconceito. Foi um dos sócios da empresa Embrapi (Empresa Brasileira de Produtores Independentes), uma tentativa frustrada dos realizadores não dependerem dos grandes produtores. Castillini era um autodidata e tinha orgulho disso.
Estive com ele uma tarde de sábado em 2012. Saímos de sua casa para ir na padaria próxima para ele comprar mais cigarro. Eu tomei uma Coca de garrafa de vidro. Ele deve ter tomado um café. Naquela época, o Adriano Stuart tinha acabado de morrer. Comentei como tinha ficado nervoso porque a repercussão na imprensa tinha sido pequena.

- Rapaz, pode ter certeza quando eu morrer somente você vai escrever algo. Ninguém se importa com a gente.


Castillini foi profético.

Biografia desvenda as verdades e mentiras sobre Nelson Gonçalves

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Biografia desvenda as verdades e mentiras sobre Nelson Gonçalves

Vida do cantor é narrada por Marco Aurélio Barroso, que fez pesquisas durante quatro anos e bancou a edição do livro em que passa a limpo todas as histórias que criaram um mito



Por Ubiratan Brasil

Desconsolado pelo acúmulo de problemas pessoais, o professor universitário Marco Aurélio Barroso, fã ardoroso de biografias, distraia-se folheando os livros e revistas da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Um dia, uma notícia publicada na Revista do Rádio chamou sua atenção: a cantora Betty White ateara fogo às vestes e se suicidara por causa do amor não correspondido do cantor Nelson Gonçalves. Chocado com o fato, Barroso intensificou sua pesquisa até decidir em escrever um livro sobre a fascinante vida do artista. Em 2001, quatro anos depois, ele concluiu o trabalho, que recebeu o título A Revolta do Boêmio – A Vida de Nelson Gonçalves, em que mais retifica que ratifica as informações que circularam a respeito do cantor até sua morte, em 1998, aos 78 anos.

“Criou-se um mito em torno do Nelson”, conta o escritor. “O problema é que ele mais ajudou alimentar que destruir as falsas histórias, por ser uma pessoa muito insegura”. Assim, a leitura permite derrubar uma série de lendas, como a de que ele teria feito mais de 2 mil gravações, o que lhe garantiu viajar até Nova York, onde teria sido cumprimentado por Frank Sinatra. Ou de que teria se trancado em sua casa durante vários dias, na década de 60, para se livrar do vício da cocaína, sendo alimentado com comida passada por debaixo da porta. “Ele gravou muito, mas não chegou nem a mil músicas (foram 869), e o processo para se livrar da droga foi o tradicional, em que as doses vão diminuindo com o tempo”.

Á medida que progredia na pesquisa (leu toda as publicações arquivadas na Biblioteca Nacional, fez mais de 500 entrevistas com amigos e familiares do cantor que hoje moram não apenas no Rio, mas também em Taubaté, São José dos Campos e no bairro do Brás, onde Nelson também residiu), Barroso percebia que o trabalho aumentava, pois a quantidade de inverdades não diminuía. “São tantos fatos desconexos que a própria família não impediu a publicação de nenhuma história, pois eles mesmos não tinham certeza sobre alguns eles”, explica.

Gaúcho, Nelson Gonçalves foi criado em São Paulo e tinha o nome de batismo de Antônio Gonçalves. Sua primeira gravação ocorreu em 1941, quando cantou um samba de Ataulfo Alves e, durante toda aquela década, suas apresentações buscavam imitar o timbre de Orlando Silva. “Foi em 1952, quando começou a gravar as músicas de Adelino Moreira que Nelson se firmou como o maior cantor do Brasil, fama intocável até 57, quando começou a utilizar drogas”.
                                          
A consagração tornou-o um homem instável, colecionando mulheres e filhos que eram simplesmente abandonados. “A família de Nelson em uma década não é a mesma nos dez anos seguintes”, conta Barroso, que relatou a violência com que tratava suas mulheres e a desatenção com os filhos, para os quais não pagava pensão. “Ele não fazia isso por maldade, mas por completo desconhecimento em como enfrentar a vida em família”.

Histórias saborosas, porém não faltam – viciado em cavalos, Nelson manteve oito animais no Jóquei Clube carioca que entre 1959 e 64, disputaram 138 provas. E só venceram seis. Adorava também jogo de dados viciados, que eram levados por ele. Foi preso em 1966 por portar cocaína, vício que foi maldosamente explorado pelo jornalista David Nasser, da revista Cruzeiro. Mas a eternidade está garantia em interpretações A Volta do Boêmio, Doidivana e Meu Vício É Você.

Com o trabalho, Marco Aurélio Barroso foi premiado pela Biblioteca Nacional, que reconheceu sua persistência: como não encontrou editor, ele mesmo bancou a publicação. Assim, o livro não está ainda nas livrarias, mas pode ser encontrado pelo email arevoltadoboemio@bol.com.br, por R$ 37. Em tempo: a cantora Betty White realmente não se suicidou por amor a Nelson, mas morreu em um acidente doméstico com álcool.


Publicado originalmente em O Estado de São Paulo em 23 de fevereiro de 2002. 

Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD

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Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD



Docudrama narra a trajetória artística e pessoal do ídolo da Era do Rádio

Por Jaime Biaggio

Só a objetividade do documentário talvez acabasse amortecendo as possibilidades dramáticas da história. Só as licenças poéticas da ficção talvez fizessem soar inverossímil uma meia dúzia de lances que parecem inventados (até porque alguns realmente foram, e pelo próprio protagonista). Fato é que o docudrama, um misto de depoimentos e imagens de arquivo com cenas ficcionalizadas, foi o formato escolhido para “Nelson Gonçalves”. Dirigido por Elizeu Ewald e produzido pelo mesmo Diler Trindade dos produtos cinematográficos da Xuxa, o filme, em cartaz exclusivamente no Odeon BR e prestes a sair em DVD, é auto-explicado pelo título.

Auto-explicado, mas jamais auto-resumido. A vida do consagrado ícone da Música Popular Boêmia, morto em 18 de abril de 1998, aos 78 anos, de parada cardíaca, não se resume em duas palavras. Antes de vir para o Rio tentar a sorte como cantor de rádio, o gaúcho Nelson, esquentado desde sempre, tentara ganhar a vida sopapeando os outros como boxeador (jurava ele ter disputado 33 lutas, só perdendo a primeira e a última). Já consagrado, chegou a ganhar um extra como cafetão, a ser preso como traficante, a afundar no vício da cocaína. Todas essas histórias são relembradas na tela em depoimentos de pessoas que conviveram com ele, como Sérgio Cabral, Cauby Peixoto e Arthur Moreira Lima, e na parte ficcional por Alexandre Borges.

- O docudrama foi o formato pretendido desde o início – afirma o diretor. – É um exercício de linguagem fantástico e uma tendência cada vez maior.

Se o formato narrativo do filme é aquele pretendido desde o início, a ideia de levar a história para o cinema é mais recente. “Nelson Gonçalves”, nasceu como série em três capítulos para a TV, tanto que foi todo rodado em vídeo (não o badalado vídeo digital: analógico mesmo). A possibilidade da tela grande nasceu, num típico lance de Nelson Gonçalves, de um contratempo. No caso, a dificuldade de fechar um contrato de exibição com alguma emissora em 1999 (o esqueleto do filme está pronto desde então, o que se percebe nos depoimentos, da cabeça raspada de Lobão, atualmente já coberta novamente por uma cabeleira, à presença do jornalista Albino Pinheiro, falecido exatamente em 1999).

Diretor teve liberdade de tocar em temas delicados

- O projeto teve início no primeiro semestre de 1998- lembra Ewald. – Assinamos o contrato com Nelson duas ou três semanas antes dele morrer. A produção teve início em 1999, com dois meses de pesquisa de imagens de arquivo levou quase seis meses.

O processo, supervisionado por Margareth Gonçalves, filha do cantor, que consta dos créditos como produtora associada, se pautou pela absoluta transparência, algo bastante raro em biografias autorizadas. Como Nelson jamais escondeu os detalhes mais escabrosos de sua vida, como o período de três meses trancado num quarto sofrendo crises de abstinência para se livrar do vício da cocaína, não houve quaisquer saias-justas na apuração dos fatos.

- Sempre deixei claro para o Nelson que era a versão dele, mas que eu teria um papel de autor no filme, decidindo o que entraria e o que seria cortado – diz Ewald, que preferiu centrar o foco na carreira artística. – Mas ele nos deu a liberdade de tocar mesmo em assuntos que não gostaria de lembrar, como no caso da Beth White, a mulher que se matou por ciúme dele.

O suicídio de Beth White é um dos vários episódios da vida de Nelson reproduzidos ficcionalmente pelo diretor. Outras passagens dramatizadas foram a invasão do escritório da RCA, que acabou lhe valendo um contrato de assombrosos 58 anos com a gravadora, e a dura da polícia por estar sem documentos, contornada com a melhor identificação possível para Nelson: a voz.


Publicado originalmente no jornal O Globo em 28 de julho de 2001

Amor e machismo na carreira e na vida de Nelson Gonçalves

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Amor e machismo na carreira e na vida de Nelson Gonçalves

Com o relançamento, amanhã, de 50 elepês, o cantor brasileiro estabelece um recorde que nem Sinatra nem Elvis atingiram

 
Por Isa Cambará

RIO- Trata-se de um recorde internacional: a partir de amanhã, com o relançamento de 50 de seus discos, Nelson Gonçalves passa a ter 83 discos no catálogo de sua gravadora, a RCA. Entre eles, 15 estavam fora de catálogo há muito tempo. Nem mesmo Frank Sinatra nem Elvis Presley atingiram esse número, que parece natural ao cantor. Ele garante que o “pacotão” alcançará a casa de um milhão em vendagem. Sabe que seus fãs são fiéis – afinal, na sua agenda há apresentações marcadas até o fim do ano – e não pensa muito em justificar essa preferência: “Ou eu sou muito bom ou o povo é burro. Como conheço a sabedoria popular, prefiro acreditar na primeira hipótese”.

Além de segura de si, Nelson Gonçalves é precavido. Todos os meses, religiosamente, entra nos estúdios da RCA e grava três ou quatro músicas, com o acompanhamento apenas de um instrumento. Pode ser violão, contrabaixo ou piano. As fitas são guardadas em sua casa numa estufa especial, com temperatura a 23 graus. Segundo as previsões de Nelson, vão ser transformadas em discos, quando ele não puder mais cantar.

“Veja bem, tenho dez filhos, casa com piscina, muito conforto. A aposentadoria vai me garantir tudo isso? Claro que não. Então, quando eu parar – ou pararem comigo – a gravadora terá material para muitos discos, que garantirão minha sobrevivência da melhor maneira possível”.

Como a formiga da lenda, Nelson armazenou bastante e suas fitas dariam para lançar discos novos até o século 21. A época de cigarra faz parte de um passado que ele prefere deixar para trás. A realidade de hoje é a da “formiga”, que viaja praticamente todos os fins de semana para fazer “shows” pelo Brasil. São apresentações sempre muito concorridas, com casas lotadas e o público pedindo velhos sucessos. E o pior é que Nelson nem sempre lembra das letras.

“E como poderia? Gravei em discos exatamente 2.040 músicas, fora as que eu gravo para armazenar. Minha memória não é das melhores. Então, chega um dia em que eu esqueço determinadas letras. O jeito é transformar o público em ponto. Sempre tem alguém que fica “assoprando” para mim. É a maior curtição, a gente se diverte”.

O público de Nelson Gonçalves, em sua maioria, anda por volta dos 40, 50 anos. De uns tempos para cá, os jovens o descobriram por causa da novela Cabocla, cujo tema-título foi gravado por ele. Mas o sucesso maior é entre as mulheres “maduras” que, a seu ver, gostam da sua imagem de macho. As feministas que o perdoem, mas Nelson é machão mesmo, assumido. Com o maior prazer.

“Meu êxito está, evidentemente, ligado à fama de macho. As mulheres, até hoje, dão em cima mesmo. Parece que há falta de hormônio masculino na praça e eu nunca escondi que gosto de ser machão. Na minha opinião, toda mulher gosta de ser domada, ser segura pela orelha pelo amado. Elas querem que o homem seja seu patrão, seu amo. Nenhuma mulher gosta de se sentir solta. Eu domino a minha. Não gosto de roupa muito justa, grandes decotes. Esse negócio de peito de fora na praia é bom para a mulher dos outros”.

Os homens também gostam das atitudes machistas cantadas nas músicas de Nelson Gonçalves. Nos “shows”, sempre são pedidas. Ele acha que não adiante dizer louvores ao “Planeta Água” porque o povão não vai entender, “e os Guinle e Matarazzo da vida não compram música popular brasileira”. Segundo sua experiência de 45 anos como cantor, o público gosta, mesmo, é de ouvir histórias do tipo “amo aquela desgraçada que me abandonou”.

“O segredo é cantar o amor de forma mais simples. O povo não entende letras complicadas e o compositor só pode ser considerado sucesso se atinge a massa. O Adelino Moreira, por exemplo, já é imortal. Ele diz o que as pessoas querem ouvir. Os intelectuais acham que ele é cafona, mas ele diz as mesmas coisas que Roberto Carlos em suas músicas. O “rei” não está cantando quero ser seu sabonete? Isso é Adelino Moreira puro”.

Adelino, parceiro ideal e amigo

De Adelino Moreira são os maiores sucessos de Nelson Gonçalves, como “A Volta do Boêmio”, “Meu Vício é Você”, “Escultura”. Os dois são amigos e compadres, o que levou Nelson a contratar o compositor como seu empresário.

“Por que eu iria dar esse dinheiro para outra pessoa? – diz Nelson. Adelino é meu amigo, devo muito a ele. Então, resolvi convidá-lo para ser meu empresário. Assim, nós dois saímos ganhando, a parte do leão fica entre amigos”.

Os dois já estiveram afastados por sete anos, por causa de uma discussão “boba” na época em que Nelson andava envolvido com tóxicos. Depois da recuperação – um tempo sofrido, que ele prefere esquecer – Nelson optou por outros compositores “modernos”, tentando recuperar rapidamente o sucesso. Não deu certo, pois o público queria o Nelson de sempre. Cantor e compositor acabaram se reaproximando.

O primeiro disco – que será gravado ainda este mês – terá uma só música de Adelino, “O Canto do Cisne”. Mas as outras são de compositores que o público dificilmente associaria a Nelson Gonçalves: Chico Buarque, Rita Lee, Martinho da Vila, Gonzaguinha, Ivan Lins, João Nogueira, entre outros compuseram músicas especialmente para o disco. Nelson adorou a música de Rita Lee (“tem um clima de cama”) e a de Martinho da Vila. O LP deverá ser gravado num único dia, o que é comum para Nelson Gonçalves:

“Gravo um disco inteiro em quatro horas, mais ou menos. Não preciso repetir nada: acerto de primeira. Acho que isso se deve ao fato de eu ter conseguido dominar a maneira de cantar. Hoje, sei usar todos os truques de colocação de voz, de respiração, de divisão. Sei gravar, sei mixar um disco. E, principalmente, sei música porque estudei com Moacir Silva. Aprendi muito com ele e graças a isso posso acompanhar o desempenho da orquestra, posso adiantar ou atrasar um compasso, posso cantar a mesma música em dois ou três tons. Para mim, foi imprescindível estudar música”.

Aos 63 anos, Nelson descobriu que sua voz, ao invés de baixar com a idade – como costuma acontecer – subiu um tom. Ele acha que isso se deve aos cuidados que tem com a saúde. Dorme bastante (“a única coisa que recompõe a voz é o sono”), toma ginseng, guaraná em pó, vitamina E, germe de trigo e essência de geleia real. Faz 100 abdominais por dia e três “rounds” de corda para não se esquecer que já foi “boxeur”. E até parou de fumar.

“Estou em plena forma. Em todas as áreas. Sabe quantos anos tem minha filha caçula? Nove. Continuo em atividade. Quando à minha carreira, está na melhor fase, pois atingi a maturidade como ser humano e o pleno conhecimento do ofício de cantar. Sou bom, embora não me considere melhor do que ninguém. Jorge Goulart, por exemplo, tem uma voz extraordinária, mas não lhe dão oportunidade de gravar”.

Nelson acha que no panorama musical brasileiro, atualmente, só há dois cantores “de voz”, além dele, Cauby Peixoto e Agnaldo Timóteo. Por isso, trata de se valorizar junto a gravadora. Agora mesmo, sugeriu a renovação do seu contrato por dez anos, nas seguintes bases: 15 milhões de cruzeiros e um Mercedez do ano, como luvas, e 15% sobre as vendas dos discos ao invés dos 10% que recebe, atualmente. E não acha muito suas pretensões.

“Tenho 42 anos na mesma gravadora, pois quando comecei a gravar já tinha três anos de carreira. Durante todo esse tempo, sempre consegui o que quis pelo simples fato de ser um bom investimento. Sei que vendo discos à bessa, do Norte a Sul. Então, tenho condições de exigir. Brigo, discuto, mas acabo chegando onde quero. Afinal, sou Nelson Gonçalves e já me chamaram até de Frank Sinatra brasileiro. Não me julgo melhor, mas sei que não sou pior que ele”.

Nelson prefere cantar “o que o público quer ouvir”. Lembra que foram os fãs e não a crítica que o fizeram um homem rico. Riqueza, aliás, atestada nas joias que usa na profissão. Apesar da violência da cidade, Nelson nem pensa em assaltos:

“Só ando com joias, seja em Copacabana ou na Baixada Fluminense. O povo respeita porque sabe que eu já passei fome, já fui toxicômano, já sofri o diabo. Mas, sabem, principalmente que eu sou o seu cantor. Eu até me emociono quando imagino quantas ilusões eu causei, quantos porres provoquei com esta voz que é a minha maior riqueza”.

Publicado na Folha de São Paulo em 14 de março de 1982

Mil canções

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Mil canções






Por Tárik de Souza



Ele não costuma errar. Nem mesmo quando grava em estúdio, com uma infinidade de recursos técnicos à disposição. Mas, ao cantar o samba “Nossa História” na gravação do programa “Clube dos Artistas”, levado ao ar na última sexta-feira pela Rede Tupi de Televisão, o cantor Nelson Gonçalves entrou fora do tom. Teve que parar e depois recomeçar – de forma impecável. Mais tarde, enquanto corrigia o vídeo-tape, suprimindo a entrada acidentada, o produtor do programa, José Messias, dava a explicação para o surpreendente tropeço do grande ídolo nacional: “Foi emoção. Afinal, é a milésima...”.



De fato, Nelson estava emocionado. Era a primeira vez que cantava em público o samba escolhido para marcar seu recorde indiscutível: 1.000 canções diferentes gravadas em 35 anos de carreira. “Nossa História” foi selecionada pelo próprio Nelson entre quatro músicas tiradas de um total de 517, vindas de todo o Brasil para o concurso “A Milésima Canção Para Nelson Gonçalves”, promovido pelo “Clube dos Artistas”. E além de render o prêmio de 20.000 cruzeiros a seus autores, Jorge Costa e Paulo Machado, abre o lado B do próximo LP do cantor, nas lojas dia 2 de junho: “Nelson Até 2001”. No disco, junto aos infalíveis sambas-canção de Adelino Moreira, incluíram-se preciosidades como “Vida Noturna”, de João Bosco e Aldir Blanc; “Fim de Caso” de Dolores Duran; “Castigo”, de Lupicínio Rodrigues e “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf.



Meio gago- Com 23 LPs no catálogo permanente na RCA (ele gravou 78), Nelson representa um dos maiores e mais estáveis faturamentos da gravadora. Sua primeira gravação, o 78 rotações “Sinto-me Bem”, música de Ataulfo Alves, lançada em agosto de 1941, vendeu 18.000 cópias numa época em que a marca de 2.000 discos vendidos significava absoluto sucesso nacional. Canções como “A Volta do Boêmio”, “Caminhemos” e “Segredo”, entre outras, na voz poderosa de Nelson Gonçalves, já ultrapassaram, em diversas gravações, a casa dos 2 milhões de cópias vendidas.



Agora, ás vésperas de completas 57 anos, Nelson Gonçalves ainda se mantém como um fenômeno de sucesso e popularidade. Na RCA, divide os maiores faturamentos com Martinho da Vila. Sua agenda de shows (35.000 cruzeiros por apresentação) em clubes e auditórios de todo o país está sem datas vagas até janeiro de 1977. E ele precisou cancelar os compromissos marcados de outubro deste ano a janeiro do próximo para poder realizar um projeto totalmente novo em sua carreira: um show de teatro, “Nelson Gonçalves Canta e Conta Sua Vida”, espécie de revisão crítica de seu trabalho artístico, dirigido pela atriz e professora de teatro Miriam Muniz, que encenou “Falso Brilhante”, de Elis Regina. “E aí sim”, diz Nelson com seu jeito atropelado e meio gago de falar, “talvez utilize em recurso que nunca precisei para me promover: a máquina de divulgação”.



Machão– Na verdade, o sucesso de Nelson Gonçalves deve-se fundamentalmente às suas virtudes de cantor. A voz potente, excepcionalmente afinada, mostra-se capaz até hoje, de recursos quase ilimitados. E a interpretação dramática confirma plenamente aquela postura machista que tanto o aproxima de seu público. Adelino Moreira, autor dos seus principais sucessos, diz que “as pessoas se identificam muito com as minhas letras. Ás vezes chegam para mim e dizem: “Parece que você se inspirou na minha vida”. No entanto, Adelino confessou a VEJA que muitas vezes se inspira na vida do próprio Nelson para compor. E conta que uma vez, numa festa, o cantor interessou-se por uma moça e escreveu um bilhete para ela, num guardanapo. “Como bom machão, em vez de passar o recado com discrição que o assunto merece, Nelson fez uma bolinha de papel e a atirou sobre o busto da jovem”.



Gaúcho de Santana de Livramento, criado no Brás, em São Paulo, pai de dez filhos (oito adotivos), cheio de anéis nos dedos e o nome gravado na pulseira do relógio, Nelson confirma sua aversão a certas “modernidades”. Canta sempre de terno escuro ou smoking, não admite calças justas e já devolveu um terno sem bolsos ao alfaiate: “Onde é que eu ia botar o cigarro e o isqueiro?”. Nunca se deixou maquilar, nem mesmo em programas de televisão, onde o pancake é praticamente indispensável. E anda assustado com o comportamento de alguns fãs, como desabafou a Valdir Zwetsch, da VEJA: “Tem uns caras, homens mesmo, que chegam depois de um show, chorando de emoção, e querendo me beijar na boca! Dizem: ‘Deixa eu beijar a boca de onde sai essa voz maravilhosa’. Onde já seu viu?”.



Extravagância- Enquanto a maioria dos artistas brasileiros lança um LP por ano, Nelson Gonçalves lança anualmente três. “Posso fazer isso porque meu público é fiel e está habituado. O cara chega na loja, pede meu último disco, manda embrulhar e só vai ouvir em casa. Nem ouve antes, pois já sabe que vai gostar”. E mais: Nelson se diz “surpreso e grato” por estar atingindo outro tipo de público. “Talvez por causa da onda de nostalgia, a verdade é que os jovens estão fazendo uma revisão da música brasileira e infalivelmente acabam me encontrando. Vou a clubes onde só tem garotada, cantando junto comigo meus maiores sucessos”.



Além da necessidade de alimentar esse público, fiel e crescente, com novas gravações, ele conta com outro trunfo que permite a extravagância de três discos novos por ano: reúne qualidades de um verdadeiro mestre da arte de gravar. Habituado aos esquemas primitivos de gravação em um canal só e matriz de cera, que não admitiam erros, Nelson acostumou-se a nunca repetir uma sessão de estúdio. Trabalhar com ele, dizem os técnicos, é uma tranquilidade: basta trocar a base em playback que Nelson abre a garganta e solta a voz, no tom e inflexão exatos. Ás vezes, terminada a canção, passa imediatamente para a seguinte, sem nem ouvir o que registrou antes, tão seguro está do resultado. Em um só dia grava um LP inteiro.



Alfredo Corleto, gerente de divulgação e promoção da RCA, testemunhou uma dessas sessões, em 1970, durante a regravação do LP “Nelson Interpreta Noel”. “Ele entrou no estúdio ás 14h15 e, entre papos e cafezinhos, saiu ás 18h30. O disco estava prontinho, voz de Nelson e base de Caçulinha. Só faltava enxertar alguns arranjos de orquestra”.



Parar de cantar- No ano passado, Nelson vendeu perto de 800.000 discos e renovou seu contrato com a gravadora por mais cinco anos. E começou a colocar em prática sua ideia de um arquivo musical, capaz de garantir novos lançamentos seus até o fim do século. Sua intenção é parar de cantar daqui no máximo cinco anos. Mas até lá, gravando duas ou três músicas por mês, terá vinte LPs inéditos prontos, permitindo à RCA lançar um ano por ano, de 1981 a 2001. Nessa linha de trabalho, já tem dezessete canções gravadas, voz e base, faltando só a orquestração, “que será sempre feita na época do lançamento, de acordo com as tendências musicais em voga”.



Um verdadeiro golpe de mestre, explicando lucidamente pelo próprio Nelson: “Eu penso viver até os 80 anos, e quero que o público que sempre me acompanhou tenha o que ouvir enquanto eu estiver vivo. E, além de não privar meus fãs de coisas novas, poderei me aposentar com uns cinquenta ou sessenta salários mínimos mensais só pelos direitos de execução e vendagem dos discos. Mais os vinte salários mínimos do INPS, acho que dá para garantir meu dia de amanhã. E há ainda o risco de uma dessas músicas estourar...Então, eu ganharia uma fábula – sem estar cantando. No máximo, fazendo umas dublagens por aí...”



Mas, por que parar de cantar daqui a cinco anos se sua voz se mantém firme e vigorosa há mais de três décadas? “Eu quero descansar. Este mês só passei dois dias na minha casa em Niterói. Inaugurei a piscina em janeiro e até agora só consegui tomar dois banhos. Então, vou parar para curtir minha família, viajar, ir para a Europa, aproveitar um pouco”.



Se quisesse, ele diz, “podia até parar agora que não ia passar necessidade”. Sua renda mensal está em torno de 100.000 cruzeiros. Mas ocorre que o cantor que comove multidões ainda gosta muito de subir num palco e cantar dramaticamente para os fiéis e apaixonados fãs. “É isso que me fascina. No ano passado, eu fiquei em primeiro lugar nas paradas de sucesso da Bélgica com Naquela Mesa e isso não me disse nada. Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, nada disso me interessa. O que eu quero é ser o primeiro lugar no Brás, segundo na Mooca, primeiro no Meier, terceiro em Cascadura, segundo em Ribeirão Preto...Eu cantei na ilha do Bananal e vi índio nu com disco meu embaixo do braço. Isso é que vale.”



Publicado originalmente na revista Veja em 26 de maio de 1976

Nelson volta a recitar boemia

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Nelson volta a recitar boemia



Jacqueline Enger, da redação



O boêmio voltou. Enfim ele veio para um grande show – o último foi há cerca de seis anos, no Anhembi. Com seu vozeirão, Nelson Gonçalves ocupa o palco do Olympia por apenas quatro noites, nas quais por apenas quatro noites, nas quais pinta seu Auto-Retrato – título do  centésimo décimo sexto disco de uma carreira de mais de 50 anos. No show, intitulado 50 Anos de Boemia, Nelson será acompanhado de banda, tendo como convidados o roqueiro Lobão e a sertaneja Roberta Miranda. No palco, o cantor apresenta seu novo trabalho, relembra antigos sucessos e bate um papo descontraído com o público. Aproveita, ainda, para gravar um disco ao vivo.



Aos 70 anos – completados em junho último – ele, que vem cantar “a dor de cotovelo”, deverá se sentir bem à vontade em São Paulo. Afinal, segundo diz, a boemia é mais viva por aqui, onde se por “ir a um bar, um botequim e ficar batendo papo. No Rio, ou se corre do assaltante, ou não dá mais tempo para nada”. Está certo que bar e boemia convivem juntos. Mas que fique bem claro que boemia “é diferente de bebericar” – alerta Nelson Gonçalves, que aliás, se diz um homem pacato, caseiro. “Chego a ficar até dois meses sem sair de casa”. Boemia, para ele, é ser poeta, é ser pintor – ou, pelo menos, conversar sobre poesia, pintura, “falar sobre Kipling (Rudyard Kipling, autor de língua inglesa nascido na Índia, um dos seus prediletos), falar de Charles Darwin... e acabar fazendo um samba numa caixa de fósforos.”.



Acostumado a casas menores, Nelson Gonçalves não sabe ao certo o que aconteceu. De repente, os espaços ficaram pequenos demais para os fãs do cantor – “não sei se foi o público ou a população que cresceu” – interroga-se. Antes seu público era restrito ao pessoal mais velho. “Hoje é mais fácil encontrar jovens de 18 anos na plateia do que pessoas mais maduras”. Isso ele explica: “O universitário de hoje não é o de 20 anos atrás. Hoje, o jovem faz uma análise melhor do que é bom e do que é ruim. Surgiu um movimento de defesa do que é nosso. E, por acaso, eu estou no meio”.



Não exatamente por acaso, para quem, como ele, defendeu um único rótulo – Música Popular Brasileira, onde cabe o samba-canção, o xaxado, o frevo, o maxixe... Para o próximo ano, o cantor pretende abrir ainda mais esse espaço, incluindo a música sertaneja e também – por que não? – o rock. Ele quer gravar um disco com Sérgio Reis, Tonico e Tinoco, Matogrosso e Matias e Roberta Miranda – a cantora, aliás, já participa deste último disco. O outro disco previsto para o ano que vem deve trazer Titãs, Engenheiros do Hawai, Paralamas, Lobão e Lulu Santos. “Eles irão cantar em ritmo de rock e eu entro, cantando a mesma música, com a minha voz” – antecipa Nelson.



Nascido em Livramento, no Rio Grande do Sul, Nelson Gonçalves veio cedo para São Paulo. Com seis anos já estava cantando com os pais pelas feiras livres. “Nem tive tempo de pensar em qualquer outra profissão”. Completou o segundo grau meio na marra, já no Rio de Janeiro. Mas fala inglês, espanhol e italiano. Também leu muito – “Até Proust, que é chato. Mas hoje só leio gibi porque cheguei à conclusão de que tudo se repete”.



Profissionalmente, ele começou a cantar em 37 na Rádio São Paulo. Quatro anos assinava contrato com a RCA Victor (atual BMG Ariola), de onde nunca mais saiu. Nelson é talvez o único artista que permanece por tanto tempo com a mesma gravadora. “É que nem marido e mulher. Eu reclamo muito. Eles reclamam muito. Mas acabamos nos entendendo. Brigamos, mas continuamos juntos”.



Por dez anos, lá pela década de 60, Nelson foi viciado em cocaína. “Hoje, sou contra a droga, que me deixou até impotente. Tive força para sair do vício. Não levanto bandeira contra a droga, só aviso que ela não leva a nada”. Preocupado com a saúde do corpo, hoje ele prefere se exercitar num ginásio para musculação que montou em sua casa na Barra, no Rio. Estimulante, só o café que toma muito para se preparar para entrar no palco. Hoje, “com maior estabilidade emocional”, ele só recorre a “proteção de Deus”, e se benze antes de entrar em cena. Ele está, então, pronto para atender os pedidos dos fãs: “Nelson canta aquela...”.



50 ANOS DE BOEMIA- Show de lançamento de Auto-Retrato de Nelson Gonçalves. Hoje ás 21h30, amanhã e sábado ás 22h30 e domingo ás 20h30, no Olympia (rua Clélia, 1.517 – 864-7333). Ingressos: NCz$ 40,00 a NCz$ 100,00.



Publicado originalmente no Diário do Grande ABC em 2 de novembro de 1989

Nelson Gonçalves, o último dos cantores românticos

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Nelson Gonçalves, o último dos cantores românticos


O músico, que morreu no sábado, tinha planos para gravar o seu último disco na virada do século



Norma Couri, especial para o Estado



O último disco estava planejado para o ano 2000. Não deu. Nelson Gonçalves morreu de parada cardíaca ás 20h45 de sábado, a três meses dos 79 anos, a menos de dois anos do fim do século que seria selado com o último disco de sua carreira. Há muitos anos o último cantor romântico se acostumou a gravar uma faixa de quebra para cada disco. As extras vinham sendo arquivadas e o disco tinha até título: Nelson Ano 2000. Ia sair pela BMC Ariola, antiga RCA Victor na qual ele foi rei.



Sobrevivente da última geração de cantores românticos, membro da turma de ouro do Brasil formada por Vicente Celestino, Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva, Nelson Gonçalves não apaga só a voz grave e elegante. Apaga um estilo, uma época.



Anterior ao play-back, nunca repetiu uma gravação. Seus maiores sucessos se chamavam Normalista ou um emocionado Ela me Beijou e hoje ninguém mais sabe o que é isso. Caetano Veloso era criança quando ouviu Nelson Gonçalves cantar Maria Betânia, de Capiba, e assim decidiu o nome da irmãzinha. Era o kitsch cafona mais autêntico do Brasil, com bigodinho bem cuidado e brilhantina no cabelo.



Conheceu o inferno e o céu, os farrapos e a riqueza, a loucura e a fama. Ficou na miséria antes de acumular 19 apartamentos, uma casa em Itaipu, duas fazendas em Caxambu, mais quatro imóveis. Emplacou na subida quando Orlando Silva entrava em decadência, entrou na moda e saiu dela. O vozeirão foi destronado pelo cool da Bossa Nova. Nos anos 90 voltou a ser referência de roqueiro e músico pop, virou livro, foi tema de peça. Planejava virar filme e escrever a autobiografia Esta É a Minha Vida.



Nelson Gonçalves ainda era Antônio quando cantava na rua, em cima de caixote de sabão, com o pai que se fazia de ceguinho para recolher dinheiro para o menino. Virou cantor há 60 anos. Antes foi engraxate, barbeiro, mecânico, sapateiro, jornaleiro, peso meio-médio de boxe, garçom na esquina da Avenida São João com a Alameda Nothmann, gigolô na Lapa carioca.



Rei do rádio, em 1966 foi apanhado com 200 gramas de cocaína e preso. Viciado, ficou trancado por seis meses em casa pela mulher, tinha alucinações com ratos e dragões e batia nela. Um dia abriu a janela e espantou-se com o leiteiro, o jornaleiro, a vida cotidiana da cidade. Era 1968, estava com 53 quilos e curado. “Homem não é quem fica viciado, homem é quem larga o vício”, dizia. Virou uma espécie de porto seguro para os viciados do meio artístico brasileiro.



Último machão– O último cantor romântico era também o último machão. Achava óculos escuros coisa de homossexual, brinquinho nem se fala. Com uma prótese peniana, aos 75 anos dizia ter o mesmo vigor sexual dos 25, Casado três vezes – com Elvira Molla, Lourdinha Bittencourt, Maria Luiza Gonçalves -, tinha sete filhos, cinco adotivos e morava com uma das filhas, Margareth, também empresária do pai.



Nunca quis aposentar-se. Tentou ser deputado federal e vereador, não conseguiu ser eleito. Orgulhava-se de ter visto índio nu com seu disco debaixo do braço na Ilha do Bananal, profissionais da zona do meretrício com coleções de seus sucessos. E também por ter sido elogiado por Sinatra em pessoa quando cantou nos Estados Unidos. Orgulhava-se ainda da boemia, de ter nocauteado o imbatível Miguelzinho num bar da Lapa, de nunca ter chutado homem deitado e de seus melodramas de folhetim. Orgulhava-se da voz que, aos 78 anos, não havia baixado nenhum tom.



Gago, dizia: “Penso mais rápido do que consigo falar”. Por isso mesmo foi apelidado de Metralha. Mas tinha a voz mais cristalina quando cantava. Corrigia os cantores: João Gilberto, Lulu Santos, Lobão, Renato Russo. Entre os homens só refrescava Sinatra, Tony Bennett, Stevie Wonder, das mulheres gostava de Gal, Ângela Maria, Fafá de Belém.



Recuperado de um enfarte, enfrentava a vida lembrando o passado de valentia e uma penca de Corações de Jesus, medalhinha de Nossa Senhora das Graças, crucifixo, escapulário, tudo com três guias de Ogum, Xangô, Oxalá. Valeu: só Elvis Presley recebeu o Prêmio Nipper na gravadora BMG, na qual há décadas é campeão de vendas. Deixa bolachas de 78 rotações, LPs, compactos simples e duplos, caixinhas de CD – uns 2 mil sucessos pelos quais recebeu 15 discos de platina e 41 de ouro por quase 80 milhões de cópias vendidas. Fez história na música popular brasileira.



Nelson Gonçalves é de um tempo em que cantor sabia cantar, compositor sabia escrever e se dizia coisa com coisa. O lugar do besteirol, da pornografia, dos decibéis excessivos e da grosseria era na lata do lixo. Mas esse tempo foi há muito tempo e ninguém se lembra mais. O primeiro sucesso foi há 57 anos – Sinto-me Bem, de Ataulfo Alves. Seu festival de hits fala de coisas que ninguém mais sabe o que é.




Por exemplo, na música Meu Triste Long Play: “Ligue a sua eletrola/ Vista o seu negligê/, Deite-se, acabe o cigarro/, Que eu no cinzeiro deixei/, Quero sentir que você /, Na maciez do seu ninho/ Dormiu ouvindo bem baixinho/ O meu triste long-play”. E alguém ainda está conectado com camisola do dia?



Mas no que Nelson deve parecer mais surpreendente para essa meninada é nos sentimentos. Ele cantava frases desse impacto: “Eu quero esse corpo/ Que a plebe deseja/ Embora ele seja/ Prenúncio do mal”. E, naturalmente, Meu Desejo: “Tenho desejos de ver em prantos/ Magoá-la tanto com a minha ira”. Ou Meu Vício É Você: “Boneca de trapo/ Pedaço de vida/ Que vive perdida no mundo a rolar/ Farrapo de gente/ Que inconsciente/ Peca só por prazer”. Onde ele machucava a dor-de-cotovelo alheia era em Nossa História: “Se você sair/ Fecha a porta por favor/ Se a nossa história está morta/ Tudo acabou/ Não é a primeira vez/ Que sofro por teu amor/ Estou ficando freguês dessa dor”. Ele desbancava: “Maria Pureza/ Só tinha pureza no seu sobrenome”.



Nelson tinha estatura de Elvis ou Sinatra para os brasileiros, cantando no ouvido dos feridos do amor, dos abandonados, dos atraiçoados pela mulher amada e mexendo fundo com a vaidade do macho latino. A Volta do Boêmio, Deusa do Asfalto, Louquinha para Casar, Êxtase, Os Anjos, Calafrio,Hoje Quem Paga Sou Eu, Ela me Beijou.



Fez uma famosa parceria com Adelino Moreira, cantou Benedito Lacerda e David Nasser (Normalista), Ari Barroso, Herivelto Martins, Wilson Batista. Irritava-se quando diziam que ele imitava Orlando Silva. Muitos cantores tentaram imitá-lo. Na década de 90, foi reverenciado por Nelson Motta e Marisa Monte, cantado por Lobão que compôs A Deusa do Amor para ele. Virou aquela coisa que os brasileiros só costumam aplicar aos estrangeiros cult. Nelson viu essa volta sem espantou. Ele sabia. Dizia: “Sou o último a cantar assim”.



Cadilac 98– Ficou para sempre a vontade de pedir que ele repetisse a proeza de cantar em frente de uma vela que não tremulava com seu bafo, de falar sobre a amizade com dom Paulo Evaristo Arns, de ver o “treoitão” que ele dizia tirar da cintura. Também de ver uma parte da autobiografia que estava escrevendo auxiliado por Lena, as faixas do disco que planejava para o ano 2000, o Cadilac 98 com traseira de turbina de avião com que ele sonhava desfilar nas ruas, e de ouvir, pela última vez, o rei da voz.



Publicado originalmente no O Estado de São Paulo em 20 de abril de 1998
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