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VSP e as proibidas III: Penthouse (1982)

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A editora Grafipar foi responsável por trazer a Penthouse para o Brasil. O genial Bob Guccione acabou fechando negócio com os paranaenses. A revista pretendia bater Playboy, Status e Ele Ela. Mas a edição brasileira durou apenas dez edições. Sobraram as histórias a respeito dessa mitológica publicação. Na primeira edição, o editor Faruk El-Khatib contratou o escritor Marcos Rey (1925-1999) para escrever um conto exclusivo para a publicação. A história (“A bonita morte do senhor Marçal”) nunca foi incluída em nenhum dos livros de contos ou antologias do autor. Ou seja: o conto ficou perdido no espaço e tempo durante todos esses anos. VSP recupera a história com exclusividade.   


Escândalo em família: o patriarca, riquíssimo, 74 anos, está de amores com uma garota que poderia ser sua filha. Caduquice? Loucura? Uma “fria” para os negócios? Descubra (e delicie-se) você mesmo!



A BONITA MORTE DO SENHOR MARÇAL



Conto de Marcos Rey



O telefone do primogênito, Silas Marçal, funcionou a tarde toda, desta vez não para a organização de mais uma festa de arromba promovida pela elegantérrima Isaltina, sua mulher. Seria uma reunião de família, privadíssima, concentrada no living, portas e janelas fechadas, mordomo e criados com algodão nos ouvidos e o telefone desligado. Gente de fora só o Amarante, sócio em vinte por cento nos negócios do velho. Diná, irmã de Silas e Lucas, foi contra a convocação. Aquilo não lhe parecia assunto para discutirem na presença de estranhos.



- Não vamos envolver o Amarante nisso – suplicou. – A cor vermelha não fica bem no meu rosto.



Seus irmãos hesitaram, avaliando os receios de Diná, sempre tão ponderada nas questões morais da família, porém foi o seu próprio marido, o Mota, ex-Motinha das rodas de boêmia quando solteiro, quem inesperadamente defendeu a convocação do Amarante com o timbre de voz de coisas irrefutáveis.



- Não há mais tanto motivo assim de sigilo. A bomba já estourou. Ando por aí e sei bem disso.



A palavra bomba poderia ser evitada. Mas escândalo seria ainda pior.



- Pensei que tudo fosse uma descoberta sua – disse Diná com um fio de esperança.



- Não tenho bossa para detetive amador nem sou de espiar a vida alheia – replicou o Mota como se fosse o que mais lamentasse o ocorrido. – O que sei ouvi no bar de executivos, na sauna, na Associação Comercial, e principalmente no clube. Aí até os garçons comentaram e acham graça.



- No Armorial? – espantou-se Diná, abaixando o tom de voz com receio de que a criadagem ouvisse. – Que falta de respeito! Ele foi o presidente durante tantos anos. Seu retrato está no salão de honra! Como foi que o caso chegou até lá?



Silas e Lucas, presentes na ocasião na casa da irmã, encontro que antecedeu a reunião do Grande Conselho da Família, olharam fixamente para o cunhado, tensos e curiosos.



- Nem queria dizer- murmurou o Mota contraindo o rosto dolorosamente como se alguém lhe espremesse uma espinha. – Esperava que esse desatino tivesse um fim breve. Na sauna a gente não vê o rosto das pessoas que fofocam, por causa da fumaça, e acaba esquecendo. No bar, fala-se muito por causa dos drinques e por falta de assunto. O que se diz entra por um ouvido e sai por outro. Mas, no clube! Ele não deveria ter feito isso.



- Desembuche, Mota – exigiu o primogênito.



O cunhado ganhou mais alguns sofridos segundos, em que faturou importância na família. Como não levara no casamento nenhuma fortuna a somar com a dos Marçal, nem título universitário ou mesmo um bom emprego, nunca lhe davam crédito, a começar pelo velho, que fizera relações-públicas da empresa sem nenhuma voz na diretoria. Se não fosse o Amarante, de cuja mulher se tornara amigo, nem sala com secretária teria.



- Seu Evandro esteve sábado com ela no clube – revelou. – Não é boato porque eu os vi. Jogaram tênis com todo o pessoal assistindo. Até parecia uma partida de final de campeonato.



Diná, que não bebia, serviu-se uma dose insensata de uísque.



- Ele não joga tênis desde que teve o enfarto!



- Não são seus problemas de saúde que interessam agora – sentenciou o primogênito. – Alguns sócios com seus 74 anos e enfartados, praticam Cooper, nadam, fazem ginástica, mas não se expõem num lugar frequentado pelas suas famílias com uma zabaneira do lado.



- Zabaneira! Que palavra feia!- exclamou Diná, enojada, como se reprovasse Silas por proferi-la.



- Posso substituir por prostituta, se preferir – disse o irmão.



Lucas, sentindo o ambiente por demais atomizado e talvez por ser o caçula, mas afastado das responsabilidades familiares, tratou de usar alguns panos quentes.



- Nada de exageros – pediu em tom sereno. – E você Mota, não ponha mais lenha nisso. A turma pode ter pensado que a moça era alguma parenta nossa ou a filha de algum amigo do velho. A malícia correu por sua conta.



- Mas o Mota disse que todos se aglomeraram para assistir à partida – lembrou Silas. – Fariam isso se não estivessem escandalizados?



Ainda pondo em ação seu sortimento de panos quentes, o caçula tentou encontrar resposta.



- Um homem da idade do velho, jogando tênis, sempre chama a atenção. Acho a curiosidade natural.



O Mota, como quem não tivesse nada com o caso, imparcial como um computador, abriu a boca apenas para transmitir informações registradas sábado no clube. Se se excedesse, bastaria apertarem um botão ou desligar a tomada e pararia.



- Entraram juntinhos, ele de bermuda, ele de short. Seu Evandro com o braço em torno da cintura da moça. A cada passo, beijavam-se como um casal de namorados. Enquanto a quadra não vagava, ficaram se esfregando, encostados na cerca. Da parte dela, exibicionismo puro. Parecia querer comprometê-lo. Seu Evandro não percebia essa intenção. Estava excitado e não se escondia. Às onze horas, num sábado de sol como o que tivemos, o clube fica lotado. Quem passava pela cerca, parava. Diógenes, o diretor de sede, viu a cena e fez cara feia. Teria tomado uma atitude se ela não envolvesse um ex-presidente. Ouvi comentários. O Átila, das louças, disse num grupo de sócios: “O que houve com o velho Marçal? Pirou?” Foi, cá entre nós, a impressão que tive. Caduquice. Loucura. Miolo mole. Qualquer coisa assim.



Lucas, diante do que ouviu, deixou seus panos esfriarem. Diná olhava para o copo, desejando que ele contivesse veneno. O primogênito deu uma longa e lenta volta pela sala e parou perto do Mota com uma ordem já elaborada.



- Descubra, Mota, quem é essa pessoa. É o mais depressa possível. Depois faremos uma reunião em casa. Devemos tomar urgentemente uma decisão.



Mota não precisou de mais de três dias para ultimar as investigações. Pela primeira vez após tantos anos de casamento e de atividade na empresa encarregavam-no de um trabalho importante. Tudo concluído, como era sábado e não se encontrariam na empresa, ligou para Silas mas sem adiantar os resultados. A expectativa realçaria o seu papel. Houve, então, uma torrente de telefonemas entre Silas e o irmão e entre Diná e as cunhadas.  A reunião foi enfim marcada para a mesma noite. Amarante, sócio e mais antigo amigo de Marçal, seria convidado. Felizmente a mulher dele, muito doente, não compareceria. Uma pessoa a menos para ouvir as confidências vexaminosas.



Isaltina ordenou aos criados que deixassem os salgadinhos sobre a mesa e que não faltasse gelo: não queria que ouvissem o que fosse discutido e resolvido. Lucas e Diná não trariam os filhos, para que o mau exemplo do avô não os prejudicasse mais tarde. No entanto, Carlito, filho único de Silas e Isa, com o braço na tipoia, devido a mais uma queda de sua moto, não apenas ficaria em casa mas, ciente do que se passava, graças à sensibilidade dos seus ouvidos, insistia em participar do Conselho. Os não que ouviu apenas serviram para incrementar seu interesse. À última hora, foi admitido.



Os primeiros a chegar foram Lucas e Iara.



- Quem é a gloriosa? - quis saber o caçula.



- O Mota não disse.



- Vi o papai na empresa – disse Lucas. – Se mamãe estivesse viva ficaria ainda mais apaixonada. O velho está enxuto, empinadinho. Desde o enfarto não aparenta gozar de tão boa saúde. Até a voz está mais firme, encorpada. Você notou?



- Ele não parece mal- admitiu o primogênito.



Levando o irmão, pelo braço, a um canto do grande living da mansão de Silas, Lucas falou de suas últimas leituras.



- Estive lendo um artigo de um médico alemão. Ele diz ter observado que relações sexuais são o melhor tratamento para certas moléstias do coração. É o que se recomenda, especialmente para os idosos, antes ou depois dos enfartos. Pode ser que papai, mesmo sem ter lido isso, tenha acertado na mosca. Aos 74 está melhor do que aos 64. Daí meu receio, mano. Pode ser que tirando o seu pirulito o estejamos condenando à morte. Pensou nisso?



O primogênito sacudiu a cabeça irritado:



- Lucas, ninguém está querendo impedir que o velho dê suas trepadas! Ele é maior de idade, viúvo e tem dinheiro para gastar. O que não podemos permitir é que exponha ao ridículo nossa família e que prejudique moralmente a empresa. Uma empresa que, você bem sabe, está balançando. Jamais precisamos tanto de credibilidade!



- Escute aqui, mano, seus temores exagerados não seriam um resto do protestantismo da mamãe? Foi você quem teve que segurar mais tempo a barra da Escola Dominical. Não é moralismo demais?



Se Lucas esperava uma confissão, ouviu, sim, mas douto naipe:



- Pondo a questão moral de lado, tenho temores, sim. De que, vendo o velho nessa farra, pensem que estamos nadando em dinheiro, o que não é bom com tantos esquerdistas circulando por aí. Ou que se imagine o contrário, que é a decadência moral que sempre caminha paralela à decadência econômica. Não quero dar a impressão que os Marçal vivem os últimos dias de Pompéia. Entendeu?



- Entendi, senhor vice.



Chegou o Amarante, que vira os três irmãos nascer, já tendo festejado com Evandro bodas de outo duma verdadeira amizade. Sócio fundador do Armorial, amigos dos amigos de Marçal, desconfiava dos motivos da reunião e mostrava-se preocupado. E não queria meter-se até o pescoço naquilo. Refugiou-se na companhia das mulheres, atrás de um forte resfriado que trouxera de casa.



Carlito e seu suéter irlandês, Diamond Jim, vieram da ala de serviço: o de expressões mais inteligentes acomodou-se sobre o tapete enquanto seu companheiro, com as pernas ao léu, abandonou-se num pufe, à espera do que desse e viesse. Para ele, tudo seria lucro.



Mota fez-se esperar. Ele, que ficava pelos corredores da empresa quando a diretoria se reunia, tentando aliviar com café e água mineral seus complexos e ressentimentos, tinha agora parcialmente nas mãos o próprio destino do presidente. O resultado da investigação traria no bojo a resolução do Grande Conselho. E, prestando um favor secretíssimo ao clã dos Marçal, somaria pontos no conceito familiar e quem sabe estaria pondo os pés na chefia do departamento de vendas, sua grande ambição.



Desde que o mordomo abriu a porta da casa, Mota assumiu uma postura desenhada para causar preocupação. Nem Diná sabia o que a lupa do marido focalizara aqueles três dias. Melhor assim, dividiria a dor daquele impacto com os irmãos e cunhadas.



Com exceção de Carlito, que continuou no pufe, todos aproximaram-se do casal ao entrar no living. Mota abraçou os cunhados, beijou as cunhadas, o sobrinho, afagou o focinho do setter e agradeceu a Amarante sua moderadora presença. Serviu-se um uísque.



- E então? - perguntou Silas.



- Fiz um bom serviço de campo- disse Mota. – O negócio está esclarecido. – E depois dum gole: - A pessoa chama-se Teca. – Outro para lavar a boca.



- Jovem? - quis saber Isa.



- Vinte e oito anos, mas passa por menos.



- O que ela faz na vida? – perguntou o primogênito apenas para confirmar vagas informações.



Mota afastou-se da mesa dos comestíveis, ganhou o centro do living, olhou a todos, ao seu redor, dando um tempo teatralmente correto para a próxima fala, leu a rubrica (com emoção contida) e disse:



- Aquilo que suspeitávamos estava certo. Teca é uma prostituta.



A atenção geral desviou-se para Carlito, que soltara uma gargalhada. Mota, que o detestava, odiou-o. Era inadmissível que a poluição sonora daquele imbecil prejudicasse sua performance.



- Como descobriu isso? – perguntou o caçula com cara de São Tomé.



Mota deu um giro pelo palco e voltou ao mesmo lugar, porque mais bem iluminado.



- Espremi um tal Dinovan, contato de publicidade, quem levou seu Marçal no Shampoo, um bar de executivos, certamente com a intenção de conseguir a conta da empresa. Ele nunca tinha ido num desses lugares depois do trabalho. Voltava logo para o apartamento ou ia à sauna. Devia sentir-se um tanto deprimido sozinho, num andar inteiro, só com os criados.



- É verdade – penitenciou-se Diná. – Apenas vamos visita-lo no Natal e no Dia dos Pais.



- Por isso foi uma presa fácil para essa tal de Teca, também conhecida por Tetê, uma das mariposas que transitam no Shampoo e noutros bares de executivos. Passaram a se encontrar todas as tardes. A princípio seu Evandro teria tomado as cautelas. Paixão restrita à mesa de bar. Mas, para acompanha-la, desinibido por alguns drinques, teve de circular com ele em bares de hotéis, boates, teatros e muitos lugares.



Lucas persistia na ideia de minimizar o drama.



- Ele não vai aguentar essa maratona e abandona a raia.



Com a mão espalmada, como um guarda de trânsito na avenida, Mota advertiu que tinha mais a dizer.



- Espremi também Vitória, a secretária. Ela resistiu mas acabou contando que ele deu uma joia para a Teca.



- Joia valiosa ?- perguntou Iara.



- A que Richard Burton deu a Elizabeth Taylor era mais cara.



O silêncio que se fez foi apenas pano de fundo para mais uma importuna gargalhada de Carlito.



- Para mim nunca deu joia alguma – lembrou sua filha.



Novamente a mão espalmada do guarda.



- Hélcio, o gerente da Shampoo me contou outra. No Dia dos Namorados deu um carrão para ela. Um conversível verducho de pôr água na boca.



- Está torrando o dinheiro da empresa – lamentou o primogênito, levando as mãos á cabeça.



Esperou-se uma gargalhada de Carlito que inexplicavelmente não veio, mas viria no rabo da terceira revelação.



- Ontem espremi o Pelegrino, dos imóveis – disse Mota. – Tinha ouvido um zunzum no Shampoo e queria confirmação. Como o negócio já estava feito, ele abriu o bico. Seu Evandro comprou dele um apartamento para a moça.



O próprio Lucas, tão inclinado a contemporizar, deu um tabefe na cabeça de Carlito, ao deflagrar a gargalhada, e avançando para o cunhado, perguntou:



- Kitinete?



A  pausa cruel, planejada para doer:



- Cobertura.



O Amarante, que até ali não dissera nada, isolado do mundo pelo resfriado, pensando na mulher doente, retraído por aquela conversa íntima de família, pôs-se a repetir de costas para todos e diante do grande espelho do living:



- O homem enlouqueceu! Está louco! Está louco! Está louco!



A bomba referida pelo Mota reestourava agora dentro do living. Qualquer diretor teatral vacilaria em escolher entre tantas a cara de pasmo mais perfeita. Apenas Carlito, representando sua geração, continuava a rir, embora em volume mais baixo, como um rádio cuja pilha se gastasse. E foi ele quem, sentado em seu pufe, voltado para o arco da entrada do living, viu primeiro. De sua imbecilidade vibrante restou apenas um gargarejo. Um a um olharam então todos para o mesmo ponto como nos filmes de terror quando o conde Drácula, com seu terrível problema dentário, entra em cena e só o selecionador de imagens registra.



- Papai! – exclamou Diná.



O septuagenário, que raramente visitava os filhos, e nunca sem avisar, estava lá com todo o seu aspecto patriarcal. Só lhe faltava um cavalo para comparar-se em dignidade à postura dos grandes homens estatuados em praça pública.



- Vim para conversar com o Silas sobre um determinado assunto, mas foi bom ter encontrado todos vocês aqui. Você, inclusive, Amarante. Mas o que está acontecendo? Alguma festa?



Cabia ao dono da casa falar.



- Não, pai, apenas uma pequena reunião.



- Estou atrapalhando?



Diná, encorajando-se, aproximou-se de Evandro.



- Diga o que tem a dizer, papai. Alguma coisa importante?



O velho Marçal produziu aquele sorriso inconfundível que antecede as boas notícias. Poucas vezes a família vira seu rosto iluminar-se com tanto brilho e felicidade.



- Meus filhos, minhas noras, meu neto, meu sócio e amigo Amarante...eu vou me casar.



Mota quase adiantou-se para dar parabéns ao sogro, ele que se dedicava a um tipo de esporte que consiste em pôr um pé em cada canoa e saia remando. Amarante olhou para o chão. Isaltina e Iara sentaram-se. Lucas pôs mais uísque no copo. Silas era uma pedra. Carlito ameaçou tornar a rir. Apenas Diná teve fibra de abrir a boca.



- Está doido, papai? Nós todos aqui já sabemos de que mulher se trata. Aliás, é para decidir o que fazer em relação a isso que estamos reunidos aqui. Nunca passamos por tanta vergonha! Oh, papai, se quer casar por que não procura uma mulher decente e não uma...Como é que se diz, Silas?



- Zabaneira.



- E não uma zabaneira?



Silas, instigado pela irmã, resolveu adotar a técnica do bombardeio. Arrasar as defesas do velho. Não permitir que ele contra-atacasse. Jogar todos os petardos possíveis até que hasteasse a bandeira branca.



- Já fomos informados de onde conheceu essa pessoa. Dum boteco chamado Shampoo. Sabemos da joia caríssima que lhe deu. Do automóvel de luxo. Do apartamento de cobertura...



O ancião esboçou a primeira reação:



- O apartamento não foi para ela.



Mota moveu-se: teriam lhe passado uma informação furada?



- Para quem foi então? – perguntou Lucas, ansioso. Seria um presente reservado a seu caçula, o que morava pior dos três filhos? Nesse caso talvez até topasse a madrasta.



Marçal, como se esperasse tranquilizar a todos, explicou:



- O apartamento foi para a mãe dela.



O primogênito avançou para uma coluna do living como se pretendesse, tresloucado, esmagar a cabeça. As noras começaram a chorar. Mota escondeu-se atrás de Amarante, enquanto Lucas e Diná caminharam na direção do pai, falando alto e ao mesmo tempo. Esse assédio foi logo engrossado pelo Silas e cunhadas, estas ainda em lágrimas, enquanto o Mota empurrava com as duas mãos o Amarante para o campo de batalha. No pufe, Carlito morria de rir vendo o cerco do qual o setter também já participava, latindo e friccionando as patas no tapete.



- Não queremos essa senhora como nossa madrasta! – bradava Diná.



- Sua aventura está fazendo a empresa tremer nas bases ! – argumentava o primogênito.



- O senhor dá uma cobertura para a mãe dessa vagabunda e eu e Iara morando num apartamentozinho de três peças! – lamentava Lucas.



- Marçal, ponha a cabeça no lugar ! – implorava  Amarante. – Você não está mais na idade de cometer essas loucuras! Há tantas massagistas por aí. Faça as coisas entre quatro paredes. Não precisa casar.



Mota, embaraçado, tentava silenciar o setter. Se houvesse o casamento, secretamente mandaria flores aos noivos. Sua mulher, no entanto, a mais ativa do grupo, depois de muito gritar, dramaticamente ajoelhou-se aos pés do pai.



- Não case com essa vagabunda, papai. Será uma desgraça para toda a família.



O patriarca, que atacado por todos os lados pouca oportunidade tivera de se defender, conseguiu dizer:



- Quando vocês conhecerem Teca mudarão de ideia a respeito.



- Aqui essa mulher não entra – opôs-se Isaltina.



- Em minha casa também – disse Iara.



Ainda ajoelhada, Diná proferiu:



- Prefiro a morte a ter de recebe-la.



Evandro Marçal realmente não tivera muita chance de falar desde que anunciara seu casamento, pois tinha outra importante notícia a dar. Pediu silêncio. Na expectativa de que decidira voltar atrás, o silêncio foi concedido. Até Diamond Jim parou de latir.



- Teca está aqui.



- Aqui, onde?- perguntou a de joelhos.



- No hall.



Mota olhou num relógio-calendário para marcar a data. Aquela teria mesmo de ficar na história da família como uma noite inesquecível. Se a partir dali nevasse, o que jamais acontecera em São Paulo, ninguém mais estranharia. Um deles, após o impacto da última revelação, perguntou-se: Teriam acabado as surpresas?



Não. Não porque Teca ou Tetê, como preferirem, entrava no living sem ser chamada.



Uma das raras impossibilidades literárias é descrever uma mulher bonita. Teca era morena alta, de lábios carnudos e seios montanhosos. Vestia-se de preto, bolsa e sapatos da mesma cor. O único ponto luminoso, contrastante em seu todo, era a joia do Marçal, brilhando no peito. Mota, vendo o charme que ela trouxera para a apresentação, reconhecia que o Hélcio, gerente do Shampoo, sabia escolher os elementos de sua brigada. Lamentou não tê-la conhecido no bar antes do sogro. Perdera tempo em comprar fumaça, nas saunas, no fim das tardes. Carlito estava no zoológico, fascinado diante de uma jaula de uma pantera. Mas foi sobre o Amarante que Teca exerceu mais fortemente seu poder hipnótico. Coisa feia, o velho babou.



- Ouvi o escarcéu todo – disse a falada zabaneira. – Não quero arreglo com essa gentinha, não. O casamento pra mim foi pro espaço. Eu, hein?

- Venha aqui, Teca. Diná, levante-se do chão.



- Por mim ela pode ficar ajoelhada – disse a intrusa. – Vamos embora, benzinho.



O velho Marçal, entre duas forças opostas, ora aproximava-se da amásia, ora voltava junto de seu clã, como bola de pingue-pongue.



- Vamos conversar – insistia. – Vamos conversar.



Diamond Jim acercou-se de Teca, latindo.



- Esse pulguento deve estar hidrófobo! – gritou a moça do Hélcio, recuando, medrosa, a fugir do setter, saracoteando.



- Vamos dar o pira, fofo, antes que ele me morda.



- Benzinho, a gente veio para se entender. Por favor, prendam esse cachorro!



- Ele vai me abocanhar! – bradava Teca, pulando dum lado a outro. Um vaso espatifou-se no chão. – A culpa foi dele, está tirando fina de minhas pernas. Ele foi vacinado?



- Calma, ele não vai morder. Carlito, leve esse bicho! – pedia o avô. – Teca, meu amor, quero lhe apresentar mais filhos. Diná, levante!



Já a boa distância do cão, e com tempo para respirar, a moça encerrou o ato:



- Pra mim o casamento pifou. Mas pra que a gente precisa dele? Não ligo a mínima. Miau pros meus filhos. Bom mesmo vai ser a viagem. Vamos botar o pé na estrada, fofo.



Marçal olhou para o grupo familiar, chegou a abrir a boca, mas engoliu as palavras e a passos largos, com uma pressa elétrica, saiu do living, atrás de Teca, como se perseguisse a própria felicidade.



Seis meses depois, no Shampoo. Era aquele entra-e-sai de garotas. A brigada do Hélcio estava ativíssima naquela sexta-feira. O faturamento na horizontal prometia, com tantos executivos ás mesas e no american bar, atentos como tarados ao desfile colorido das saias. Depois de uma semana de trabalho, o papo solto, o drinque, o sexo. Merecida descontração para os que conduzem os negócios da megalópole.



Numa mesa de canto, com garrafa própria e salgadinhos, Teca ou Tetê estava de volta. A brigadeira esbanjava beleza, somada agora a um international touch. Contava a um freguês seus últimos meses de Marçal e de Europa.



- Ás vezes a gente almoçava num país e jantava noutro. Uma loucura! Uma noite dormimos juntos numa banheira cheia de espuma. Seu Evandro estava com a corda toda. O velho era um barato! De manhã já estourava uma champanhota e embarcava numa legal. Se eu estivesse quebrada, me puxava pra fora e íamos badalar nos botecos. Ou então mergulhava de ponta-cabeça até não dar mais pedal.



- É, o coração não podia aguentar.



- Mas ele morreu feliz, lá em Nice, numa daquelas barracas de praia, com a cabeça apoiada no meu peito, sorrindo. Uma morte muito bonita – concluiu Teca, terna e saudosa.



Sobre a mesa do Shampoo, depois de um percurso lento e planejado, a mão carente de Júlio Amarante, já viúvo, vencendo inibições e preconceitos, segurou a de Teca, moça generosa que, além dos prazeres da vida, garantia aos seus fregueses – como oferta grátis – também uma bonita morte.

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Adultério, segredos e transgressões

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Um rolê todo sinistro. É nessa situação que o personagem Vicente de Magnífica 70 se envolve. O cara consegue ser censor da Ditadura Militar e diretor de filmes eróticos ao mesmo tempo. A série é a primeira produção de época da HBO brasileira e passa-se nos bastidores da Boca do Lixo, polo cinematográfico paulista entre as décadas de 1960 e 1970.

Aquela época foi de um período de efervescência cultural e política. Tudo isso está em Magnífica 70. Mas não é só isso. A trama possui uma narrativa central que parece inspirada nas peças do dramaturgo Nelson Rodrigues. Vicente é casado com Isabel (Maria Luisa Mendonça), mas não consegue esquecer a paixão que teve pela irmã caçula da esposa (Bella Carnero). Tudo ia bem na vida do protagonista: o emprego acomodado e o casamento monótono faziam parte da sua rotina. Até que ele assiste ao filme A Devassa da Estudante, protagonizado pela atriz Dora Dumar (Simone Spoladore). A incrível semelhança entre Dora e a antiga paixão irá enlouquecer o censor. O protagonista irá ver-se envolvido numa trama recheada de adultério, segredos e transgressões.

A série possui treze episódios na primeira temporada. Cada parte aborda os bastidores de uma parte da produção cinematográfica. O rigor com a reconstituição de época chama a atenção. Outro aspecto interessante são os personagens. Todos fogem dos estereótipos comuns das telenovelas cujos enredos possuem bonzinhos e mauzinhos. Os protagonistas de Magnífica 70 são personagens profundos que ocultam seus dramas e sonhos pessoais. O mundo lá fora é cruel e medonho.

Todos vão trabalhar com cinema buscando dinheiro fácil. As produções da rua do Triunfo tinham um público certo e precisavam dar lucro para ter continuidade. Mas os personagens da série acabam gostando do mundo da sétima arte. Isso era muito comum na Boca paulista: anônimos tornavam-se atores, produtores e até diretores da noite para o dia. Uma parte significativa do cinema brasileiro recebe uma abordagem á sua altura. Cada um deve conferir e tirar suas próprias conclusões.



Ah sim: Magnífica 70 estreia no HBO Brasil no próximo domingo (dia 24) ás 21h. 

Publicado originalmente no site da Vice Brasil em 22 de maio de 2015  

Nelson 96 no VSP em junho e julho

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Em junho deste ano, o cantor Nelson Gonçalves completaria 96 anos de vida. Para homenagear este nome notável da nossa canção popular, o VSP irá realizar um especial durante dois meses sobre este artista. Todo sábado o leitor poderá ler alguma matéria sobre esse personagem único da nossa canção.Além do resgate, o autor também irá ver posts especiais sobre o gigante da música popular.

Nelson Gonçalves lança coletânea

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Nelson Gonçalves lança coletânea


Fernanda da Escóssia
Da sucursal do Rio

O cantor Nelson Gonçalves, 76, chega aos 54 anos de carreira com um desejo: gravar “Detalhes” de Roberto Carlos, no disco que fará no ano que vem com canções inéditas em seu repertório.

Sua gravadora, a BMG-Ariola, lançou nesta semana um pacote com três CDs de canções remasterizadas. “O Mito” faz uma síntese da carreira de Nelson Gonçalves, desde “Sinto-me bem”, de 1941, até “Naquela Mesa”, que Nelson gravou em 1990 com o violonista Raphael Rabello.

Ex-garçom, ex-lutador de boxe, ex-viciado em cocaína, Nelson começou a cantar aos cinco anos, acompanhando o pai nas feiras de São Paulo. Foi recusado por várias rádios, até que a antiga RCA, hoje BMG-Ariola, o contratou.

“Disseram que eu seria o maior cantor do Brasil”, conta, sem dizer se acha que cumpriu a previsão da gravadora. Continua fazendo shows e diz que não ficou rico.

Tem certeza de que é mais fácil ser cantor hoje do que no seu tempo. Ex-gago, venceu a gagueira cantando e diz que os cantores de hoje não sabem cantar.

Hoje, Nelson Gonçalves ri ao lembrar o episódio em que Ary Barroso o mandou embora de uma rádio, afirmando que ele seria melhor garçom do que cantor. Nesta entrevista, ele relembra estas e outras histórias de sua carreira.

Folha- O que o senhor achou do pacote de CDs relançados por sua gravadora?

Nelson Gonçalves- Ainda não ouvi, sabe? Eles querem relançar tudo, ás vezes fico meio pessimista. É CD demais. Estou muito chateado porque um ladrão entrou na minha casa e levou mais de metade da minha coleção de discos, desde o primeiro que eu lancei. Pelo menos era um ladrão musical.

Folha- Como o senhor começou a cantar?

Nelson-No colégio. A professora sempre me chamava para puxar o hino. O problema era que, na hora do recreio, lá vinham os colegas me chamar de carusinho. Até que desisti e disse para o meu pai. Ela brigou comigo porque eu tinha me recusado a cantar o hino da minha pátria e me levou para a feira. Eu, com cinco, seis anos, subia num banco e cantava “A Maladrinha”: “Oh linda imagem de mulher que me seduz...”. Era um sucesso.

Folha- É verdade que o senhor foi recusado por muitas rádios da época?

Nelson-Eu era garçom no bar do meu irmão e lutava boxe. Comecei a cantar na Rádio São Paulo, mas vim tentar a vida no Rio. Fui na RCA, em cinco ou seis rádios. Mandavam que eu cantasse, eu cantava e não gostavam.
Na Rádio Transmissora, Ary Barroso pediu que eu cantasse. Perguntou o que eu fazia em São Paulo, e eu disse. Ele me falou: “Olha, meu filho, volta para São Paulo e vai lutar boxe ou ser garçom, porque tu não sabes cantar”. Até que consegui gravar um disco com duas canções e fui de novo à RCA, aí me aceitaram. Disseram que eu seria o maior cantor do Brasil.

Folha- O senhor acha que é?

Nelson-Não sei. Não sou melhor do que ninguém. Quando comecei a cantar, diziam que eu imitava o Orlando Silva, meu grande ídolo. Aí baixei minha voz um tom e consegui me diferenciar. Ser cantor naquele tempo era mais difícil.

Folha- O senhor acha que os cantores de hoje não sabem cantar?

Nelson-Não é que não sabem, mas eles colocam as sílabas tônicas nos lugares errados, dividem as palavras de forma errados, dividem as palavras de forma errada, não inspiram. Você vê esse tal de Falcão. Isso lá é cantor? Ninguém nem entende o que ele diz, as músicas não significam nada. Mas temos hoje grandes cantores, como Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Fagner, Fábio Júnior...

Folha- O que há de verdade no seu envolvimento com drogas e bebida?

Nelson-Nunca bebi. Mas já usei tóxico. Fui dependente de 58 a 66, mais ou menos. Cheguei a ser preso por isso, levei tiro de traficante, mas dizia que era pedrada porque nesse mundo ninguém entrega ninguém. Fiquei mais de dois anos sem gravar, meses depois deixei o tóxico. Hoje só fumo.

Folha- Fumar não prejudicou sua voz?

Nelson-Não sei. Fumei uma carteira de cigarro por dia, por muito tempo. Quando meu pulmão reclamava, o médico dizia que era do cigarro. Há três meses tive pneumonia, mas fiquei bom. Hoje fumo, no máximo, quatro cigarros por dia.


Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 21 de dezembro de 1995

Nelson Gonçalves, boemia no Planalto Central

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Nelson Gonçalves, boemia no Planalto Central
                                          

O cantor cansou da violência. Quer tranquilidade, serenatas madrugada adentro, uma cachacinha. Escolheu Sobradinho no Distrito Federal, para morar.
                                       
Por Tânia Fusco

BRASÍLIA- Foi amor à primeira vista. Dia cinco o cantor Nelson Gonçalves fez um show no colégio La Salle, de Sobradinho, bucólica cidade satélite da Capital Federal, reduto de seresteiros. Encantou-se e voltou 10 dias depois. Repetiu a seresta, caiu na noite e decidiu viver em Sobradinho “para fazer serenata em janela de mulher bonita e varar madrugada cantando e bebendo na rua”. A boêmia muda de endereço: vem para o Planalto Central, na cidade que, plagiando a música, Nelson define como “divina e graciosa”.

“Chega de neurose e medo. Eu quero paz de criança dormindo”, diz, com a licença de Dolores Duran, para explicar o que motiva a mudança. “Quero esquina, cadeira na calçada, amizade dos vizinhos, respeito humano, carinho, muito amor e alguma cachaça”, insiste Nelson que vive no Rio desde 1940. “O Rio era outro. Havia troca, entrega, paixão, sinceridade. Não gosto de viver isolado, com medo. O povo de Sobradinho – a melhor gente que encontrei nos últimos tempos – será meu parceiro e guardião”.

E “a mulher que floriu seu caminho” – Maria Luiza, com quem tem um casamento de 25 anos – compreendeu e vem junto. Nelson, que procura casa para comprar, espera passar o réveillon já instalado em Sobradinho. “Olha, não estou mudando para Brasília, não. Vou é em Sobradinho. Brasília é fria, impessoal, não tem gente na rua, não tem esquina. E tem assalto e muito poder. Disso eu quero distância”.

“Cansei dos meus erros, pecados e vícios”, diz a letra de um dos seus sucessos, Boneca de Trapo. Nelson, quase 50 anos de vida artística, 60 milhões de discos vendidos, 310 compactos, 115 LPs e 172 discos de rpm gravados, cansou da cidade grande. “Chega de sufoco”, proclama e revela: “Tenho 69 anos muito bem vividos. Cabeça de 20 e poucos. Coração de adolescente. Vou levar para Sobradinho o melhor Nelson Gonçalves. Um homem que tem confiança no que é, no que pode, no que quer. Quero é muito amor, muita paz, alegria de viver”.

Nelson é gaúcho de Livramento. Mas não tem saudade da terra natal. “Essa mudança não é inspirada em saudosismo. É redescoberta mesmo. Ai eu vou ficar tranquilo, no coração do Brasil, perto de tudo. Longe o suficiente do poder e da neurose. Vou fazer um disco dedicado ao amor, ao renascimento dessa mania gostosa de amar. Não é bom demais”.

Nelson deixa a casa em Itaipu, em Niterói, onde vive e o apartamento da Barra da Tijuca, onde “passeia de vez em quando”. Traz a mulher, a filha caçula, de 16 anos, o violão e “pequenas paixões” para recomeçar a vida em Sobradinho, que prepara um superbaile da saudade para recebe-lo. “Aqui ele será nosso rei, amigo precioso, vizinho mais ilustre”, garante Robson Salazar, diretor social da Sociedade Desportiva Sobradinho (Sodeso), maior clube da cidade, que toda sexta-feira faz serestas de varar madrugada.

“A Petrópolis do DF”, assim é chamada pelos moradores

Com pouco menos de 50 milhões de cruzados Nelson Gonçalves poderá comprar “casa grande com jardim e piscina” que procura em Sobradinho, a cidade-satélite de 90 mil habitantes, muitas casas e poucos prédios. Vai encontrar tranquilidade.

No ano passado, a única delegacia de polícia da cidade – o 13 DP – registrou 2.495 ocorrências policiais, incluindo 1.436 acidentes de trânsito, a maioria de pequenas proporções. No Distrito Federal inteiro – plano-piloto e oito cidades-satélites – foram registradas 45.913 ocorrências policiais.

Sobradinho, que tem esse nome por conta do riacho que banha a cidade – o rio Sobradinho – nasceu em 13 de maio de 1960. Fica a 22 km do plano-piloto, na área mais alta do Planalto Central e, por isso mesmo, é chamada por moradores apaixonados de “Petrópolis do DF”. Não tem vida própria. É uma cidade dormitório com área de 12 quilômetros quadrados. Suas áreas mais nobres são as quadras oito e seis, onde Nelson procura uma casa. Ali terá como vizinho o principal ponto de encontro dos seresteiros locais – o bar Coisas do Norte.

A cidade tem dois clubes. Mas um deles, com 4.500 sócios, é o preferido. A Sociedade Desportiva Sobradinhense. Lá, em janeiro, será realizada a festa-seresta-recepção para Nelson Gonçalves. “Vamos juntar todos os apaixonados e seresteiros desse Planalto Central”, promete Róbson Salazar, diretor social do Clube, que já corre lista para a festa do boêmio.

Publicado em O Estado de São Paulo em 1 de dezembro de 1988

Nelson Gonçalves regrava os anos 80

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 Nelson Gonçalves regrava os anos 80


FABIO SCHIVARTCHE
Da Reportagem Local

Aos 78 anos e 78 milhões de discos vendidos, o cantor Nelson Gonçalves assume de vez uma postura pop e, sem abrir mão de seu estilo dor-de-cotovelo, lança um disco com regravações de rock e MPB dos anos 80.

O disco “Ainda É Cedo”, o 128º de sua carreira, chega hoje ás lojas com uma tiragem de fôlego para quem faz sucesso há mais de 50 anos: 500 mil cópias.

Produzido por Robertinho do Recife, o álbum revisita músicas que foram sucesso nas vozes dos Paralamas do Sucesso (“Meu Erro”), Lobão (“Me Chama”), Rita Lee (“Caso Sério”), Cazuza (“Faz Parte do Meu Show”) e Legião Urbana (“Ainda é Cedo”) etc.

“Quis gravar essas músicas para fazer uma ponte entre o passado e o futuro”, disse Nelson á Folha, anteontem, na festa de lançamento do novo disco.

“Ainda É Cedo”, não é a primeira incursão do cantor no meio pop brasileiro. Em 1987, ele dividiu os microfones com Lobão na valsa “A Deusa do Amor”, incluída no disco “Nós”.

A atualização do repertório, no entanto, não mudou seu estilo de cantar. As palavras continuam soando com todas as sílabas. “O esmero na pronúncia é uma de minhas marcas”.

Para os fãs do Nelson da era dó-de-peito, quando ele dividia as atenções com Orlando Silva e Francisco Alves, o cantor manda dizer que não mudou seu estilo.

“Não fiz um disco de rock, apenas mudei o repertório de canções escolhidas, dando o meu tratamento pessoal ás músicas”, afirmou o cantor.

Tratamento pessoal, nesse caso, é transpor, para as linguagens do bolero e do samba-canção, versos como os de Herbert Vianna, em seu ska “Meu Erro”.

“O segredo é saber achar a dramaticidade na letra da música”, disse Nelson, gaúcho de Livramento, que, mesmo com a idade avançada e a saúde debilitada, sabe levar a vida de bom humor.

Malandro
Goma no cabelo e, como todo bom malandro das antigas, vestido de gravata e paletó, Nelson, um ex-boxeador profissional, relembrou na entrevista seus dias na prisão.

Ele esteve preso na Casa de Detenção, em São Paulo, por um mês, por porte de cocaína, em 1966.

“Cheguei à prisão e logo dei um soco na cara do preso que mandava no local. Disse que dali em diante nós dois seríamos os chefes, e todo mundo passou a me respeitar”, disse.

Segundo ele, o nome do novo disco é uma provocação para as pessoas que pensavam que sua carreira havia acabado no ano passado, quando ficou dias internado no hospital por causa de problemas respiratórios. “Quis mostrar que ainda é cedo para parar de cantar”, afirmou.

O novo disco tem também músicas de Marisa Monte e Arnaldo Antunes (“De Mais Ninguém”), Caetano Veloso (“Você é Linda”), Pino Daniele (“Bem Que Se Quis”), Herbert Vianna e Paula Toller (“Nada por Mim”), João Donato e Abel Silva (“Simples Carinho”) e Luiz Melodia (“Estácio, Holly Estácio”).

O cantor planeja excursionar para divulgar o novo disco, a partir de janeiro. Serão dois meses viajando pelo Brasil para, depois, mostrar o seu trabalho nos Estados Unidos e Japão.

Além das viagens, Nelson prepara o repertório de seu 129º disco para 98, só com músicas inéditas de sua autoria.

ELE

“Na minha turma, eram mais ou menos uns 50 que cheiravam cocaína. Desse caras, 49 morreram, e só fiquei eu”.

“Quero ser cremado para ninguém fazer xixi na minha lápide”.

“Bebo e fumo. Quem cuida da minha voz é Deus”.

“Nem pagando ponho óculos escuros. Isso é coisa de bicha!”.

OS OUTROS

“Maravilhoso. Foi a melhor regravação da música que já ouvi”.
Dado Villa Lobos, ex- Legião Urbana, autor da música “Agora É Cedo”, regravada por Nelson Gonçalves.

“Foi uma prova de sua generosidade, uma abertura dele ao que os mais jovens estão fazendo. A canção ficou adequada ao canto do Nelson, muito enloquente”.
Arnaldo Antunes, um dos autores da música “De Mais Ninguém”, incluída no disco de Nelson Gonçalves.


Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 26 de setembro de 1997

Luiz Castillini (1944-2015)

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Estive pessoalmente uma única vez com Luiz Castillini. Era senhor um pequeno, magricelo, simpático. Meio pessimista talvez. Fumava um cigarro atrás do outro na sua casa na Mooca, zona leste de São Paulo. Não gostava de dar entrevistar nem de aparecer muito. Mas foi um nome de destaque na Boca paulistana. Seus filmes flertavam com o cinema de gênero, tinha notadamente talento para fazer filmes de terror com orçamentos pequenos. Nascido em Barretos, iniciou sua carreira com projecionista e trabalhou em televisão antes de chegar ao cinema. Começou na Boca trabalhando com roteiros. Lembro que tinha grande admiração por Tony Vieira e com Ody Fraga. Foi casado com a atriz e musa Patrícia Scalvi, um dos grandes nomes da rua do Triunfo. Seus trabalhos de direção eram interessantes e um chegou a participar de um festival de cinema. Segundo ele, fizeram tudo para que seu filme não obtivesse nenhuma premiação. Por puro preconceito. Foi um dos sócios da empresa Embrapi (Empresa Brasileira de Produtores Independentes), uma tentativa frustrada dos realizadores não dependerem dos grandes produtores. Castillini era um autodidata e tinha orgulho disso.
Estive com ele uma tarde de sábado em 2012. Saímos de sua casa para ir na padaria próxima para ele comprar mais cigarro. Eu tomei uma Coca de garrafa de vidro. Ele deve ter tomado um café. Naquela época, o Adriano Stuart tinha acabado de morrer. Comentei como tinha ficado nervoso porque a repercussão na imprensa tinha sido pequena.

- Rapaz, pode ter certeza quando eu morrer somente você vai escrever algo. Ninguém se importa com a gente.


Castillini foi profético.

Biografia desvenda as verdades e mentiras sobre Nelson Gonçalves

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Biografia desvenda as verdades e mentiras sobre Nelson Gonçalves

Vida do cantor é narrada por Marco Aurélio Barroso, que fez pesquisas durante quatro anos e bancou a edição do livro em que passa a limpo todas as histórias que criaram um mito



Por Ubiratan Brasil

Desconsolado pelo acúmulo de problemas pessoais, o professor universitário Marco Aurélio Barroso, fã ardoroso de biografias, distraia-se folheando os livros e revistas da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Um dia, uma notícia publicada na Revista do Rádio chamou sua atenção: a cantora Betty White ateara fogo às vestes e se suicidara por causa do amor não correspondido do cantor Nelson Gonçalves. Chocado com o fato, Barroso intensificou sua pesquisa até decidir em escrever um livro sobre a fascinante vida do artista. Em 2001, quatro anos depois, ele concluiu o trabalho, que recebeu o título A Revolta do Boêmio – A Vida de Nelson Gonçalves, em que mais retifica que ratifica as informações que circularam a respeito do cantor até sua morte, em 1998, aos 78 anos.

“Criou-se um mito em torno do Nelson”, conta o escritor. “O problema é que ele mais ajudou alimentar que destruir as falsas histórias, por ser uma pessoa muito insegura”. Assim, a leitura permite derrubar uma série de lendas, como a de que ele teria feito mais de 2 mil gravações, o que lhe garantiu viajar até Nova York, onde teria sido cumprimentado por Frank Sinatra. Ou de que teria se trancado em sua casa durante vários dias, na década de 60, para se livrar do vício da cocaína, sendo alimentado com comida passada por debaixo da porta. “Ele gravou muito, mas não chegou nem a mil músicas (foram 869), e o processo para se livrar da droga foi o tradicional, em que as doses vão diminuindo com o tempo”.

Á medida que progredia na pesquisa (leu toda as publicações arquivadas na Biblioteca Nacional, fez mais de 500 entrevistas com amigos e familiares do cantor que hoje moram não apenas no Rio, mas também em Taubaté, São José dos Campos e no bairro do Brás, onde Nelson também residiu), Barroso percebia que o trabalho aumentava, pois a quantidade de inverdades não diminuía. “São tantos fatos desconexos que a própria família não impediu a publicação de nenhuma história, pois eles mesmos não tinham certeza sobre alguns eles”, explica.

Gaúcho, Nelson Gonçalves foi criado em São Paulo e tinha o nome de batismo de Antônio Gonçalves. Sua primeira gravação ocorreu em 1941, quando cantou um samba de Ataulfo Alves e, durante toda aquela década, suas apresentações buscavam imitar o timbre de Orlando Silva. “Foi em 1952, quando começou a gravar as músicas de Adelino Moreira que Nelson se firmou como o maior cantor do Brasil, fama intocável até 57, quando começou a utilizar drogas”.
                                          
A consagração tornou-o um homem instável, colecionando mulheres e filhos que eram simplesmente abandonados. “A família de Nelson em uma década não é a mesma nos dez anos seguintes”, conta Barroso, que relatou a violência com que tratava suas mulheres e a desatenção com os filhos, para os quais não pagava pensão. “Ele não fazia isso por maldade, mas por completo desconhecimento em como enfrentar a vida em família”.

Histórias saborosas, porém não faltam – viciado em cavalos, Nelson manteve oito animais no Jóquei Clube carioca que entre 1959 e 64, disputaram 138 provas. E só venceram seis. Adorava também jogo de dados viciados, que eram levados por ele. Foi preso em 1966 por portar cocaína, vício que foi maldosamente explorado pelo jornalista David Nasser, da revista Cruzeiro. Mas a eternidade está garantia em interpretações A Volta do Boêmio, Doidivana e Meu Vício É Você.

Com o trabalho, Marco Aurélio Barroso foi premiado pela Biblioteca Nacional, que reconheceu sua persistência: como não encontrou editor, ele mesmo bancou a publicação. Assim, o livro não está ainda nas livrarias, mas pode ser encontrado pelo email arevoltadoboemio@bol.com.br, por R$ 37. Em tempo: a cantora Betty White realmente não se suicidou por amor a Nelson, mas morreu em um acidente doméstico com álcool.


Publicado originalmente em O Estado de São Paulo em 23 de fevereiro de 2002. 

Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD

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Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD



Docudrama narra a trajetória artística e pessoal do ídolo da Era do Rádio

Por Jaime Biaggio

Só a objetividade do documentário talvez acabasse amortecendo as possibilidades dramáticas da história. Só as licenças poéticas da ficção talvez fizessem soar inverossímil uma meia dúzia de lances que parecem inventados (até porque alguns realmente foram, e pelo próprio protagonista). Fato é que o docudrama, um misto de depoimentos e imagens de arquivo com cenas ficcionalizadas, foi o formato escolhido para “Nelson Gonçalves”. Dirigido por Elizeu Ewald e produzido pelo mesmo Diler Trindade dos produtos cinematográficos da Xuxa, o filme, em cartaz exclusivamente no Odeon BR e prestes a sair em DVD, é auto-explicado pelo título.

Auto-explicado, mas jamais auto-resumido. A vida do consagrado ícone da Música Popular Boêmia, morto em 18 de abril de 1998, aos 78 anos, de parada cardíaca, não se resume em duas palavras. Antes de vir para o Rio tentar a sorte como cantor de rádio, o gaúcho Nelson, esquentado desde sempre, tentara ganhar a vida sopapeando os outros como boxeador (jurava ele ter disputado 33 lutas, só perdendo a primeira e a última). Já consagrado, chegou a ganhar um extra como cafetão, a ser preso como traficante, a afundar no vício da cocaína. Todas essas histórias são relembradas na tela em depoimentos de pessoas que conviveram com ele, como Sérgio Cabral, Cauby Peixoto e Arthur Moreira Lima, e na parte ficcional por Alexandre Borges.

- O docudrama foi o formato pretendido desde o início – afirma o diretor. – É um exercício de linguagem fantástico e uma tendência cada vez maior.

Se o formato narrativo do filme é aquele pretendido desde o início, a ideia de levar a história para o cinema é mais recente. “Nelson Gonçalves”, nasceu como série em três capítulos para a TV, tanto que foi todo rodado em vídeo (não o badalado vídeo digital: analógico mesmo). A possibilidade da tela grande nasceu, num típico lance de Nelson Gonçalves, de um contratempo. No caso, a dificuldade de fechar um contrato de exibição com alguma emissora em 1999 (o esqueleto do filme está pronto desde então, o que se percebe nos depoimentos, da cabeça raspada de Lobão, atualmente já coberta novamente por uma cabeleira, à presença do jornalista Albino Pinheiro, falecido exatamente em 1999).

Diretor teve liberdade de tocar em temas delicados

- O projeto teve início no primeiro semestre de 1998- lembra Ewald. – Assinamos o contrato com Nelson duas ou três semanas antes dele morrer. A produção teve início em 1999, com dois meses de pesquisa de imagens de arquivo levou quase seis meses.

O processo, supervisionado por Margareth Gonçalves, filha do cantor, que consta dos créditos como produtora associada, se pautou pela absoluta transparência, algo bastante raro em biografias autorizadas. Como Nelson jamais escondeu os detalhes mais escabrosos de sua vida, como o período de três meses trancado num quarto sofrendo crises de abstinência para se livrar do vício da cocaína, não houve quaisquer saias-justas na apuração dos fatos.

- Sempre deixei claro para o Nelson que era a versão dele, mas que eu teria um papel de autor no filme, decidindo o que entraria e o que seria cortado – diz Ewald, que preferiu centrar o foco na carreira artística. – Mas ele nos deu a liberdade de tocar mesmo em assuntos que não gostaria de lembrar, como no caso da Beth White, a mulher que se matou por ciúme dele.

O suicídio de Beth White é um dos vários episódios da vida de Nelson reproduzidos ficcionalmente pelo diretor. Outras passagens dramatizadas foram a invasão do escritório da RCA, que acabou lhe valendo um contrato de assombrosos 58 anos com a gravadora, e a dura da polícia por estar sem documentos, contornada com a melhor identificação possível para Nelson: a voz.


Publicado originalmente no jornal O Globo em 28 de julho de 2001

Amor e machismo na carreira e na vida de Nelson Gonçalves

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Amor e machismo na carreira e na vida de Nelson Gonçalves

Com o relançamento, amanhã, de 50 elepês, o cantor brasileiro estabelece um recorde que nem Sinatra nem Elvis atingiram

 
Por Isa Cambará

RIO- Trata-se de um recorde internacional: a partir de amanhã, com o relançamento de 50 de seus discos, Nelson Gonçalves passa a ter 83 discos no catálogo de sua gravadora, a RCA. Entre eles, 15 estavam fora de catálogo há muito tempo. Nem mesmo Frank Sinatra nem Elvis Presley atingiram esse número, que parece natural ao cantor. Ele garante que o “pacotão” alcançará a casa de um milhão em vendagem. Sabe que seus fãs são fiéis – afinal, na sua agenda há apresentações marcadas até o fim do ano – e não pensa muito em justificar essa preferência: “Ou eu sou muito bom ou o povo é burro. Como conheço a sabedoria popular, prefiro acreditar na primeira hipótese”.

Além de segura de si, Nelson Gonçalves é precavido. Todos os meses, religiosamente, entra nos estúdios da RCA e grava três ou quatro músicas, com o acompanhamento apenas de um instrumento. Pode ser violão, contrabaixo ou piano. As fitas são guardadas em sua casa numa estufa especial, com temperatura a 23 graus. Segundo as previsões de Nelson, vão ser transformadas em discos, quando ele não puder mais cantar.

“Veja bem, tenho dez filhos, casa com piscina, muito conforto. A aposentadoria vai me garantir tudo isso? Claro que não. Então, quando eu parar – ou pararem comigo – a gravadora terá material para muitos discos, que garantirão minha sobrevivência da melhor maneira possível”.

Como a formiga da lenda, Nelson armazenou bastante e suas fitas dariam para lançar discos novos até o século 21. A época de cigarra faz parte de um passado que ele prefere deixar para trás. A realidade de hoje é a da “formiga”, que viaja praticamente todos os fins de semana para fazer “shows” pelo Brasil. São apresentações sempre muito concorridas, com casas lotadas e o público pedindo velhos sucessos. E o pior é que Nelson nem sempre lembra das letras.

“E como poderia? Gravei em discos exatamente 2.040 músicas, fora as que eu gravo para armazenar. Minha memória não é das melhores. Então, chega um dia em que eu esqueço determinadas letras. O jeito é transformar o público em ponto. Sempre tem alguém que fica “assoprando” para mim. É a maior curtição, a gente se diverte”.

O público de Nelson Gonçalves, em sua maioria, anda por volta dos 40, 50 anos. De uns tempos para cá, os jovens o descobriram por causa da novela Cabocla, cujo tema-título foi gravado por ele. Mas o sucesso maior é entre as mulheres “maduras” que, a seu ver, gostam da sua imagem de macho. As feministas que o perdoem, mas Nelson é machão mesmo, assumido. Com o maior prazer.

“Meu êxito está, evidentemente, ligado à fama de macho. As mulheres, até hoje, dão em cima mesmo. Parece que há falta de hormônio masculino na praça e eu nunca escondi que gosto de ser machão. Na minha opinião, toda mulher gosta de ser domada, ser segura pela orelha pelo amado. Elas querem que o homem seja seu patrão, seu amo. Nenhuma mulher gosta de se sentir solta. Eu domino a minha. Não gosto de roupa muito justa, grandes decotes. Esse negócio de peito de fora na praia é bom para a mulher dos outros”.

Os homens também gostam das atitudes machistas cantadas nas músicas de Nelson Gonçalves. Nos “shows”, sempre são pedidas. Ele acha que não adiante dizer louvores ao “Planeta Água” porque o povão não vai entender, “e os Guinle e Matarazzo da vida não compram música popular brasileira”. Segundo sua experiência de 45 anos como cantor, o público gosta, mesmo, é de ouvir histórias do tipo “amo aquela desgraçada que me abandonou”.

“O segredo é cantar o amor de forma mais simples. O povo não entende letras complicadas e o compositor só pode ser considerado sucesso se atinge a massa. O Adelino Moreira, por exemplo, já é imortal. Ele diz o que as pessoas querem ouvir. Os intelectuais acham que ele é cafona, mas ele diz as mesmas coisas que Roberto Carlos em suas músicas. O “rei” não está cantando quero ser seu sabonete? Isso é Adelino Moreira puro”.

Adelino, parceiro ideal e amigo

De Adelino Moreira são os maiores sucessos de Nelson Gonçalves, como “A Volta do Boêmio”, “Meu Vício é Você”, “Escultura”. Os dois são amigos e compadres, o que levou Nelson a contratar o compositor como seu empresário.

“Por que eu iria dar esse dinheiro para outra pessoa? – diz Nelson. Adelino é meu amigo, devo muito a ele. Então, resolvi convidá-lo para ser meu empresário. Assim, nós dois saímos ganhando, a parte do leão fica entre amigos”.

Os dois já estiveram afastados por sete anos, por causa de uma discussão “boba” na época em que Nelson andava envolvido com tóxicos. Depois da recuperação – um tempo sofrido, que ele prefere esquecer – Nelson optou por outros compositores “modernos”, tentando recuperar rapidamente o sucesso. Não deu certo, pois o público queria o Nelson de sempre. Cantor e compositor acabaram se reaproximando.

O primeiro disco – que será gravado ainda este mês – terá uma só música de Adelino, “O Canto do Cisne”. Mas as outras são de compositores que o público dificilmente associaria a Nelson Gonçalves: Chico Buarque, Rita Lee, Martinho da Vila, Gonzaguinha, Ivan Lins, João Nogueira, entre outros compuseram músicas especialmente para o disco. Nelson adorou a música de Rita Lee (“tem um clima de cama”) e a de Martinho da Vila. O LP deverá ser gravado num único dia, o que é comum para Nelson Gonçalves:

“Gravo um disco inteiro em quatro horas, mais ou menos. Não preciso repetir nada: acerto de primeira. Acho que isso se deve ao fato de eu ter conseguido dominar a maneira de cantar. Hoje, sei usar todos os truques de colocação de voz, de respiração, de divisão. Sei gravar, sei mixar um disco. E, principalmente, sei música porque estudei com Moacir Silva. Aprendi muito com ele e graças a isso posso acompanhar o desempenho da orquestra, posso adiantar ou atrasar um compasso, posso cantar a mesma música em dois ou três tons. Para mim, foi imprescindível estudar música”.

Aos 63 anos, Nelson descobriu que sua voz, ao invés de baixar com a idade – como costuma acontecer – subiu um tom. Ele acha que isso se deve aos cuidados que tem com a saúde. Dorme bastante (“a única coisa que recompõe a voz é o sono”), toma ginseng, guaraná em pó, vitamina E, germe de trigo e essência de geleia real. Faz 100 abdominais por dia e três “rounds” de corda para não se esquecer que já foi “boxeur”. E até parou de fumar.

“Estou em plena forma. Em todas as áreas. Sabe quantos anos tem minha filha caçula? Nove. Continuo em atividade. Quando à minha carreira, está na melhor fase, pois atingi a maturidade como ser humano e o pleno conhecimento do ofício de cantar. Sou bom, embora não me considere melhor do que ninguém. Jorge Goulart, por exemplo, tem uma voz extraordinária, mas não lhe dão oportunidade de gravar”.

Nelson acha que no panorama musical brasileiro, atualmente, só há dois cantores “de voz”, além dele, Cauby Peixoto e Agnaldo Timóteo. Por isso, trata de se valorizar junto a gravadora. Agora mesmo, sugeriu a renovação do seu contrato por dez anos, nas seguintes bases: 15 milhões de cruzeiros e um Mercedez do ano, como luvas, e 15% sobre as vendas dos discos ao invés dos 10% que recebe, atualmente. E não acha muito suas pretensões.

“Tenho 42 anos na mesma gravadora, pois quando comecei a gravar já tinha três anos de carreira. Durante todo esse tempo, sempre consegui o que quis pelo simples fato de ser um bom investimento. Sei que vendo discos à bessa, do Norte a Sul. Então, tenho condições de exigir. Brigo, discuto, mas acabo chegando onde quero. Afinal, sou Nelson Gonçalves e já me chamaram até de Frank Sinatra brasileiro. Não me julgo melhor, mas sei que não sou pior que ele”.

Nelson prefere cantar “o que o público quer ouvir”. Lembra que foram os fãs e não a crítica que o fizeram um homem rico. Riqueza, aliás, atestada nas joias que usa na profissão. Apesar da violência da cidade, Nelson nem pensa em assaltos:

“Só ando com joias, seja em Copacabana ou na Baixada Fluminense. O povo respeita porque sabe que eu já passei fome, já fui toxicômano, já sofri o diabo. Mas, sabem, principalmente que eu sou o seu cantor. Eu até me emociono quando imagino quantas ilusões eu causei, quantos porres provoquei com esta voz que é a minha maior riqueza”.

Publicado na Folha de São Paulo em 14 de março de 1982

Mil canções

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Mil canções






Por Tárik de Souza



Ele não costuma errar. Nem mesmo quando grava em estúdio, com uma infinidade de recursos técnicos à disposição. Mas, ao cantar o samba “Nossa História” na gravação do programa “Clube dos Artistas”, levado ao ar na última sexta-feira pela Rede Tupi de Televisão, o cantor Nelson Gonçalves entrou fora do tom. Teve que parar e depois recomeçar – de forma impecável. Mais tarde, enquanto corrigia o vídeo-tape, suprimindo a entrada acidentada, o produtor do programa, José Messias, dava a explicação para o surpreendente tropeço do grande ídolo nacional: “Foi emoção. Afinal, é a milésima...”.



De fato, Nelson estava emocionado. Era a primeira vez que cantava em público o samba escolhido para marcar seu recorde indiscutível: 1.000 canções diferentes gravadas em 35 anos de carreira. “Nossa História” foi selecionada pelo próprio Nelson entre quatro músicas tiradas de um total de 517, vindas de todo o Brasil para o concurso “A Milésima Canção Para Nelson Gonçalves”, promovido pelo “Clube dos Artistas”. E além de render o prêmio de 20.000 cruzeiros a seus autores, Jorge Costa e Paulo Machado, abre o lado B do próximo LP do cantor, nas lojas dia 2 de junho: “Nelson Até 2001”. No disco, junto aos infalíveis sambas-canção de Adelino Moreira, incluíram-se preciosidades como “Vida Noturna”, de João Bosco e Aldir Blanc; “Fim de Caso” de Dolores Duran; “Castigo”, de Lupicínio Rodrigues e “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf.



Meio gago- Com 23 LPs no catálogo permanente na RCA (ele gravou 78), Nelson representa um dos maiores e mais estáveis faturamentos da gravadora. Sua primeira gravação, o 78 rotações “Sinto-me Bem”, música de Ataulfo Alves, lançada em agosto de 1941, vendeu 18.000 cópias numa época em que a marca de 2.000 discos vendidos significava absoluto sucesso nacional. Canções como “A Volta do Boêmio”, “Caminhemos” e “Segredo”, entre outras, na voz poderosa de Nelson Gonçalves, já ultrapassaram, em diversas gravações, a casa dos 2 milhões de cópias vendidas.



Agora, ás vésperas de completas 57 anos, Nelson Gonçalves ainda se mantém como um fenômeno de sucesso e popularidade. Na RCA, divide os maiores faturamentos com Martinho da Vila. Sua agenda de shows (35.000 cruzeiros por apresentação) em clubes e auditórios de todo o país está sem datas vagas até janeiro de 1977. E ele precisou cancelar os compromissos marcados de outubro deste ano a janeiro do próximo para poder realizar um projeto totalmente novo em sua carreira: um show de teatro, “Nelson Gonçalves Canta e Conta Sua Vida”, espécie de revisão crítica de seu trabalho artístico, dirigido pela atriz e professora de teatro Miriam Muniz, que encenou “Falso Brilhante”, de Elis Regina. “E aí sim”, diz Nelson com seu jeito atropelado e meio gago de falar, “talvez utilize em recurso que nunca precisei para me promover: a máquina de divulgação”.



Machão– Na verdade, o sucesso de Nelson Gonçalves deve-se fundamentalmente às suas virtudes de cantor. A voz potente, excepcionalmente afinada, mostra-se capaz até hoje, de recursos quase ilimitados. E a interpretação dramática confirma plenamente aquela postura machista que tanto o aproxima de seu público. Adelino Moreira, autor dos seus principais sucessos, diz que “as pessoas se identificam muito com as minhas letras. Ás vezes chegam para mim e dizem: “Parece que você se inspirou na minha vida”. No entanto, Adelino confessou a VEJA que muitas vezes se inspira na vida do próprio Nelson para compor. E conta que uma vez, numa festa, o cantor interessou-se por uma moça e escreveu um bilhete para ela, num guardanapo. “Como bom machão, em vez de passar o recado com discrição que o assunto merece, Nelson fez uma bolinha de papel e a atirou sobre o busto da jovem”.



Gaúcho de Santana de Livramento, criado no Brás, em São Paulo, pai de dez filhos (oito adotivos), cheio de anéis nos dedos e o nome gravado na pulseira do relógio, Nelson confirma sua aversão a certas “modernidades”. Canta sempre de terno escuro ou smoking, não admite calças justas e já devolveu um terno sem bolsos ao alfaiate: “Onde é que eu ia botar o cigarro e o isqueiro?”. Nunca se deixou maquilar, nem mesmo em programas de televisão, onde o pancake é praticamente indispensável. E anda assustado com o comportamento de alguns fãs, como desabafou a Valdir Zwetsch, da VEJA: “Tem uns caras, homens mesmo, que chegam depois de um show, chorando de emoção, e querendo me beijar na boca! Dizem: ‘Deixa eu beijar a boca de onde sai essa voz maravilhosa’. Onde já seu viu?”.



Extravagância- Enquanto a maioria dos artistas brasileiros lança um LP por ano, Nelson Gonçalves lança anualmente três. “Posso fazer isso porque meu público é fiel e está habituado. O cara chega na loja, pede meu último disco, manda embrulhar e só vai ouvir em casa. Nem ouve antes, pois já sabe que vai gostar”. E mais: Nelson se diz “surpreso e grato” por estar atingindo outro tipo de público. “Talvez por causa da onda de nostalgia, a verdade é que os jovens estão fazendo uma revisão da música brasileira e infalivelmente acabam me encontrando. Vou a clubes onde só tem garotada, cantando junto comigo meus maiores sucessos”.



Além da necessidade de alimentar esse público, fiel e crescente, com novas gravações, ele conta com outro trunfo que permite a extravagância de três discos novos por ano: reúne qualidades de um verdadeiro mestre da arte de gravar. Habituado aos esquemas primitivos de gravação em um canal só e matriz de cera, que não admitiam erros, Nelson acostumou-se a nunca repetir uma sessão de estúdio. Trabalhar com ele, dizem os técnicos, é uma tranquilidade: basta trocar a base em playback que Nelson abre a garganta e solta a voz, no tom e inflexão exatos. Ás vezes, terminada a canção, passa imediatamente para a seguinte, sem nem ouvir o que registrou antes, tão seguro está do resultado. Em um só dia grava um LP inteiro.



Alfredo Corleto, gerente de divulgação e promoção da RCA, testemunhou uma dessas sessões, em 1970, durante a regravação do LP “Nelson Interpreta Noel”. “Ele entrou no estúdio ás 14h15 e, entre papos e cafezinhos, saiu ás 18h30. O disco estava prontinho, voz de Nelson e base de Caçulinha. Só faltava enxertar alguns arranjos de orquestra”.



Parar de cantar- No ano passado, Nelson vendeu perto de 800.000 discos e renovou seu contrato com a gravadora por mais cinco anos. E começou a colocar em prática sua ideia de um arquivo musical, capaz de garantir novos lançamentos seus até o fim do século. Sua intenção é parar de cantar daqui no máximo cinco anos. Mas até lá, gravando duas ou três músicas por mês, terá vinte LPs inéditos prontos, permitindo à RCA lançar um ano por ano, de 1981 a 2001. Nessa linha de trabalho, já tem dezessete canções gravadas, voz e base, faltando só a orquestração, “que será sempre feita na época do lançamento, de acordo com as tendências musicais em voga”.



Um verdadeiro golpe de mestre, explicando lucidamente pelo próprio Nelson: “Eu penso viver até os 80 anos, e quero que o público que sempre me acompanhou tenha o que ouvir enquanto eu estiver vivo. E, além de não privar meus fãs de coisas novas, poderei me aposentar com uns cinquenta ou sessenta salários mínimos mensais só pelos direitos de execução e vendagem dos discos. Mais os vinte salários mínimos do INPS, acho que dá para garantir meu dia de amanhã. E há ainda o risco de uma dessas músicas estourar...Então, eu ganharia uma fábula – sem estar cantando. No máximo, fazendo umas dublagens por aí...”



Mas, por que parar de cantar daqui a cinco anos se sua voz se mantém firme e vigorosa há mais de três décadas? “Eu quero descansar. Este mês só passei dois dias na minha casa em Niterói. Inaugurei a piscina em janeiro e até agora só consegui tomar dois banhos. Então, vou parar para curtir minha família, viajar, ir para a Europa, aproveitar um pouco”.



Se quisesse, ele diz, “podia até parar agora que não ia passar necessidade”. Sua renda mensal está em torno de 100.000 cruzeiros. Mas ocorre que o cantor que comove multidões ainda gosta muito de subir num palco e cantar dramaticamente para os fiéis e apaixonados fãs. “É isso que me fascina. No ano passado, eu fiquei em primeiro lugar nas paradas de sucesso da Bélgica com Naquela Mesa e isso não me disse nada. Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, nada disso me interessa. O que eu quero é ser o primeiro lugar no Brás, segundo na Mooca, primeiro no Meier, terceiro em Cascadura, segundo em Ribeirão Preto...Eu cantei na ilha do Bananal e vi índio nu com disco meu embaixo do braço. Isso é que vale.”



Publicado originalmente na revista Veja em 26 de maio de 1976

Nelson volta a recitar boemia

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Nelson volta a recitar boemia



Jacqueline Enger, da redação



O boêmio voltou. Enfim ele veio para um grande show – o último foi há cerca de seis anos, no Anhembi. Com seu vozeirão, Nelson Gonçalves ocupa o palco do Olympia por apenas quatro noites, nas quais por apenas quatro noites, nas quais pinta seu Auto-Retrato – título do  centésimo décimo sexto disco de uma carreira de mais de 50 anos. No show, intitulado 50 Anos de Boemia, Nelson será acompanhado de banda, tendo como convidados o roqueiro Lobão e a sertaneja Roberta Miranda. No palco, o cantor apresenta seu novo trabalho, relembra antigos sucessos e bate um papo descontraído com o público. Aproveita, ainda, para gravar um disco ao vivo.



Aos 70 anos – completados em junho último – ele, que vem cantar “a dor de cotovelo”, deverá se sentir bem à vontade em São Paulo. Afinal, segundo diz, a boemia é mais viva por aqui, onde se por “ir a um bar, um botequim e ficar batendo papo. No Rio, ou se corre do assaltante, ou não dá mais tempo para nada”. Está certo que bar e boemia convivem juntos. Mas que fique bem claro que boemia “é diferente de bebericar” – alerta Nelson Gonçalves, que aliás, se diz um homem pacato, caseiro. “Chego a ficar até dois meses sem sair de casa”. Boemia, para ele, é ser poeta, é ser pintor – ou, pelo menos, conversar sobre poesia, pintura, “falar sobre Kipling (Rudyard Kipling, autor de língua inglesa nascido na Índia, um dos seus prediletos), falar de Charles Darwin... e acabar fazendo um samba numa caixa de fósforos.”.



Acostumado a casas menores, Nelson Gonçalves não sabe ao certo o que aconteceu. De repente, os espaços ficaram pequenos demais para os fãs do cantor – “não sei se foi o público ou a população que cresceu” – interroga-se. Antes seu público era restrito ao pessoal mais velho. “Hoje é mais fácil encontrar jovens de 18 anos na plateia do que pessoas mais maduras”. Isso ele explica: “O universitário de hoje não é o de 20 anos atrás. Hoje, o jovem faz uma análise melhor do que é bom e do que é ruim. Surgiu um movimento de defesa do que é nosso. E, por acaso, eu estou no meio”.



Não exatamente por acaso, para quem, como ele, defendeu um único rótulo – Música Popular Brasileira, onde cabe o samba-canção, o xaxado, o frevo, o maxixe... Para o próximo ano, o cantor pretende abrir ainda mais esse espaço, incluindo a música sertaneja e também – por que não? – o rock. Ele quer gravar um disco com Sérgio Reis, Tonico e Tinoco, Matogrosso e Matias e Roberta Miranda – a cantora, aliás, já participa deste último disco. O outro disco previsto para o ano que vem deve trazer Titãs, Engenheiros do Hawai, Paralamas, Lobão e Lulu Santos. “Eles irão cantar em ritmo de rock e eu entro, cantando a mesma música, com a minha voz” – antecipa Nelson.



Nascido em Livramento, no Rio Grande do Sul, Nelson Gonçalves veio cedo para São Paulo. Com seis anos já estava cantando com os pais pelas feiras livres. “Nem tive tempo de pensar em qualquer outra profissão”. Completou o segundo grau meio na marra, já no Rio de Janeiro. Mas fala inglês, espanhol e italiano. Também leu muito – “Até Proust, que é chato. Mas hoje só leio gibi porque cheguei à conclusão de que tudo se repete”.



Profissionalmente, ele começou a cantar em 37 na Rádio São Paulo. Quatro anos assinava contrato com a RCA Victor (atual BMG Ariola), de onde nunca mais saiu. Nelson é talvez o único artista que permanece por tanto tempo com a mesma gravadora. “É que nem marido e mulher. Eu reclamo muito. Eles reclamam muito. Mas acabamos nos entendendo. Brigamos, mas continuamos juntos”.



Por dez anos, lá pela década de 60, Nelson foi viciado em cocaína. “Hoje, sou contra a droga, que me deixou até impotente. Tive força para sair do vício. Não levanto bandeira contra a droga, só aviso que ela não leva a nada”. Preocupado com a saúde do corpo, hoje ele prefere se exercitar num ginásio para musculação que montou em sua casa na Barra, no Rio. Estimulante, só o café que toma muito para se preparar para entrar no palco. Hoje, “com maior estabilidade emocional”, ele só recorre a “proteção de Deus”, e se benze antes de entrar em cena. Ele está, então, pronto para atender os pedidos dos fãs: “Nelson canta aquela...”.



50 ANOS DE BOEMIA- Show de lançamento de Auto-Retrato de Nelson Gonçalves. Hoje ás 21h30, amanhã e sábado ás 22h30 e domingo ás 20h30, no Olympia (rua Clélia, 1.517 – 864-7333). Ingressos: NCz$ 40,00 a NCz$ 100,00.



Publicado originalmente no Diário do Grande ABC em 2 de novembro de 1989

Nelson Gonçalves, o último dos cantores românticos

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Nelson Gonçalves, o último dos cantores românticos


O músico, que morreu no sábado, tinha planos para gravar o seu último disco na virada do século



Norma Couri, especial para o Estado



O último disco estava planejado para o ano 2000. Não deu. Nelson Gonçalves morreu de parada cardíaca ás 20h45 de sábado, a três meses dos 79 anos, a menos de dois anos do fim do século que seria selado com o último disco de sua carreira. Há muitos anos o último cantor romântico se acostumou a gravar uma faixa de quebra para cada disco. As extras vinham sendo arquivadas e o disco tinha até título: Nelson Ano 2000. Ia sair pela BMC Ariola, antiga RCA Victor na qual ele foi rei.



Sobrevivente da última geração de cantores românticos, membro da turma de ouro do Brasil formada por Vicente Celestino, Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva, Nelson Gonçalves não apaga só a voz grave e elegante. Apaga um estilo, uma época.



Anterior ao play-back, nunca repetiu uma gravação. Seus maiores sucessos se chamavam Normalista ou um emocionado Ela me Beijou e hoje ninguém mais sabe o que é isso. Caetano Veloso era criança quando ouviu Nelson Gonçalves cantar Maria Betânia, de Capiba, e assim decidiu o nome da irmãzinha. Era o kitsch cafona mais autêntico do Brasil, com bigodinho bem cuidado e brilhantina no cabelo.



Conheceu o inferno e o céu, os farrapos e a riqueza, a loucura e a fama. Ficou na miséria antes de acumular 19 apartamentos, uma casa em Itaipu, duas fazendas em Caxambu, mais quatro imóveis. Emplacou na subida quando Orlando Silva entrava em decadência, entrou na moda e saiu dela. O vozeirão foi destronado pelo cool da Bossa Nova. Nos anos 90 voltou a ser referência de roqueiro e músico pop, virou livro, foi tema de peça. Planejava virar filme e escrever a autobiografia Esta É a Minha Vida.



Nelson Gonçalves ainda era Antônio quando cantava na rua, em cima de caixote de sabão, com o pai que se fazia de ceguinho para recolher dinheiro para o menino. Virou cantor há 60 anos. Antes foi engraxate, barbeiro, mecânico, sapateiro, jornaleiro, peso meio-médio de boxe, garçom na esquina da Avenida São João com a Alameda Nothmann, gigolô na Lapa carioca.



Rei do rádio, em 1966 foi apanhado com 200 gramas de cocaína e preso. Viciado, ficou trancado por seis meses em casa pela mulher, tinha alucinações com ratos e dragões e batia nela. Um dia abriu a janela e espantou-se com o leiteiro, o jornaleiro, a vida cotidiana da cidade. Era 1968, estava com 53 quilos e curado. “Homem não é quem fica viciado, homem é quem larga o vício”, dizia. Virou uma espécie de porto seguro para os viciados do meio artístico brasileiro.



Último machão– O último cantor romântico era também o último machão. Achava óculos escuros coisa de homossexual, brinquinho nem se fala. Com uma prótese peniana, aos 75 anos dizia ter o mesmo vigor sexual dos 25, Casado três vezes – com Elvira Molla, Lourdinha Bittencourt, Maria Luiza Gonçalves -, tinha sete filhos, cinco adotivos e morava com uma das filhas, Margareth, também empresária do pai.



Nunca quis aposentar-se. Tentou ser deputado federal e vereador, não conseguiu ser eleito. Orgulhava-se de ter visto índio nu com seu disco debaixo do braço na Ilha do Bananal, profissionais da zona do meretrício com coleções de seus sucessos. E também por ter sido elogiado por Sinatra em pessoa quando cantou nos Estados Unidos. Orgulhava-se ainda da boemia, de ter nocauteado o imbatível Miguelzinho num bar da Lapa, de nunca ter chutado homem deitado e de seus melodramas de folhetim. Orgulhava-se da voz que, aos 78 anos, não havia baixado nenhum tom.



Gago, dizia: “Penso mais rápido do que consigo falar”. Por isso mesmo foi apelidado de Metralha. Mas tinha a voz mais cristalina quando cantava. Corrigia os cantores: João Gilberto, Lulu Santos, Lobão, Renato Russo. Entre os homens só refrescava Sinatra, Tony Bennett, Stevie Wonder, das mulheres gostava de Gal, Ângela Maria, Fafá de Belém.



Recuperado de um enfarte, enfrentava a vida lembrando o passado de valentia e uma penca de Corações de Jesus, medalhinha de Nossa Senhora das Graças, crucifixo, escapulário, tudo com três guias de Ogum, Xangô, Oxalá. Valeu: só Elvis Presley recebeu o Prêmio Nipper na gravadora BMG, na qual há décadas é campeão de vendas. Deixa bolachas de 78 rotações, LPs, compactos simples e duplos, caixinhas de CD – uns 2 mil sucessos pelos quais recebeu 15 discos de platina e 41 de ouro por quase 80 milhões de cópias vendidas. Fez história na música popular brasileira.



Nelson Gonçalves é de um tempo em que cantor sabia cantar, compositor sabia escrever e se dizia coisa com coisa. O lugar do besteirol, da pornografia, dos decibéis excessivos e da grosseria era na lata do lixo. Mas esse tempo foi há muito tempo e ninguém se lembra mais. O primeiro sucesso foi há 57 anos – Sinto-me Bem, de Ataulfo Alves. Seu festival de hits fala de coisas que ninguém mais sabe o que é.




Por exemplo, na música Meu Triste Long Play: “Ligue a sua eletrola/ Vista o seu negligê/, Deite-se, acabe o cigarro/, Que eu no cinzeiro deixei/, Quero sentir que você /, Na maciez do seu ninho/ Dormiu ouvindo bem baixinho/ O meu triste long-play”. E alguém ainda está conectado com camisola do dia?



Mas no que Nelson deve parecer mais surpreendente para essa meninada é nos sentimentos. Ele cantava frases desse impacto: “Eu quero esse corpo/ Que a plebe deseja/ Embora ele seja/ Prenúncio do mal”. E, naturalmente, Meu Desejo: “Tenho desejos de ver em prantos/ Magoá-la tanto com a minha ira”. Ou Meu Vício É Você: “Boneca de trapo/ Pedaço de vida/ Que vive perdida no mundo a rolar/ Farrapo de gente/ Que inconsciente/ Peca só por prazer”. Onde ele machucava a dor-de-cotovelo alheia era em Nossa História: “Se você sair/ Fecha a porta por favor/ Se a nossa história está morta/ Tudo acabou/ Não é a primeira vez/ Que sofro por teu amor/ Estou ficando freguês dessa dor”. Ele desbancava: “Maria Pureza/ Só tinha pureza no seu sobrenome”.



Nelson tinha estatura de Elvis ou Sinatra para os brasileiros, cantando no ouvido dos feridos do amor, dos abandonados, dos atraiçoados pela mulher amada e mexendo fundo com a vaidade do macho latino. A Volta do Boêmio, Deusa do Asfalto, Louquinha para Casar, Êxtase, Os Anjos, Calafrio,Hoje Quem Paga Sou Eu, Ela me Beijou.



Fez uma famosa parceria com Adelino Moreira, cantou Benedito Lacerda e David Nasser (Normalista), Ari Barroso, Herivelto Martins, Wilson Batista. Irritava-se quando diziam que ele imitava Orlando Silva. Muitos cantores tentaram imitá-lo. Na década de 90, foi reverenciado por Nelson Motta e Marisa Monte, cantado por Lobão que compôs A Deusa do Amor para ele. Virou aquela coisa que os brasileiros só costumam aplicar aos estrangeiros cult. Nelson viu essa volta sem espantou. Ele sabia. Dizia: “Sou o último a cantar assim”.



Cadilac 98– Ficou para sempre a vontade de pedir que ele repetisse a proeza de cantar em frente de uma vela que não tremulava com seu bafo, de falar sobre a amizade com dom Paulo Evaristo Arns, de ver o “treoitão” que ele dizia tirar da cintura. Também de ver uma parte da autobiografia que estava escrevendo auxiliado por Lena, as faixas do disco que planejava para o ano 2000, o Cadilac 98 com traseira de turbina de avião com que ele sonhava desfilar nas ruas, e de ouvir, pela última vez, o rei da voz.



Publicado originalmente no O Estado de São Paulo em 20 de abril de 1998

Dois boêmios varrem Brasil com canções

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Dois boêmios varrem Brasil com canções


Nelson Gonçalves e Arthur Moreira Lima estreiam hoje em Manaus a turnê “O Boêmio e o Pianista”



Luis Antonio Giron
Da reportagem local

O BOÊMIO E O PIANISTA- Show com o cantor Nelson Gonçalves e o pianista Arthur Moreira Lima. Arranjos de Laércio de Freitas. Hoje e amanhã, ás 21, no teatro Amazonas (Manaus). Dia 17 de julho no teatro Guararapes (Recife); 31 de julho, teatro Villa-Lobos (Brasília); 1 de agosto, Uberlândia; 2 de agosto, Uberaba; 5 de agosto, Campos; 7 e 8 de agosto no Olímpia (Belo Horizonte); de 13 a 16, de 20 a 23 e de 27 a 30 de agosto no Palladium (São Paulo); 3 de setembro, Piracicaba; 4 de setembro, Americana; 5 e 6 de setembro, Campinas; 10 de setembro, Blumenau; 11 e 12 de setembro, Florianópolis; 16 de setembro, na Ópera de Arame (Curitiba); 18 de setembro, Maringá; 19 de setembro, Londrina; 25 de setembro, Joinville; 26 e 27 de setembro, Porto Alegre, Norte e Nordeste em outubro, datas e locais a confirmar. Informações pelo tel. 011-285-3607.

O cantor Nelson Gonçalves, 73, e o pianista Arthur Moreira Lima, 52, estreiam hoje, no teatro Amazonas de Manaus, uma excursão ao velho estilo. Como era hábito antes da era do rádio, os dois vão varrer o Brasil de ponta a ponta, com um programa de fazer frente à “época de ouro” da música brasileira.

O título do show, “O Boêmio e o Pianista”, não faz jus a um deles. Nelson Gonçalves nunca praticou piano, mas Arthur Moreira Lima gosta de uma boêmia, ou “boemia” – corruptela que Nelson consagrou.

“É um belo casamento do boêmio popular com o erudito”, brinca o cantor. É a primeira vez que Nelson canta com um músico erudito e Arthur acompanha um cantor popular. O pianista teoriza: “O Nelson é representativo da nossa cultura. Tem a tragicidade ibérica do nosso cancioneiro, que a bossa-nova deixou para trás”.

A dupla terminou anteontem no Rio as gravações do disco com 12 músicas de turnê, a sair em 2 de setembro em CD e LP pela BMG Ariola. “Está maravilhoso”, jura Nelson. O juramento se funda na experiência. O cantor já gravou 172 discos de 78 rotações, 312 compactos, 121 LPs, 16 CDs e já vendeu 40 milhões de cópias – um recorde brasileiro.

Com um currículo um pouco menor, 30 discos em 40 anos de atividade, Arthur diz tem se espantado com a agilidade “baixo cantante” de Nelson. “Ele é um dos poucos que sabem cantar sem ritmo, só no pulso, ‘ad libitium’. Não foi difícil para ele cantar com harmonias mais ousadas”.

Nelson achou difícil se adaptar: “Cantar com ritmo na cabeça foi uma novidade. Descobri outra maneira de cantar”.

Show mescla Liszt e Noel

O show “O Boêmio e o Pianista” percorre, a “tragicidade ibérica” da seresta, passa pelo samba e o tango dá um pulinho no clássico. Em duas horas de duração, Nelson reinterpreta clássicos da música brasileira, arranjados por Laércio de Freitas.

Nos intervalos, os dois artistas comentam como as músicas foram lançadas. Arthur sola peças de Liszt, Nazareth e Chopin. Desfilam o contingente pessimista da MPB: “Quem Há de Dizer” (Lupicínio), “A Mulher que Ficou na Taça” (Orestes Barbosa), “O Último Desejo” (Noel Rosa), tangos sobre e de Carlos Gardel e, claro, “Negue” e “A Volta do Boêmio” – duas canções de Adelino Moreira perpetuados pelo cantor. (LAG)

Publicado originalmente na Folha de São Pauloem 11 de julho de 1992

Juntos, o boêmio e o pianista

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Juntos, o boêmio e o pianista


NELSON GONÇALVES E ARTHUR MOREIRA LIMA




O duo formado entre o pianista Arthur Moreira Lima e o cantor Nelson Gonçalves faz hoje a primeira apresentação do show O Boêmio e o Pianista em São Paulo, ás 21h. Desde julho, quando a dupla estreou no Teatro Amazonas de Manaus, o espetáculo vem percorrendo as principais capitais do Brasil, com muito sucesso.



A ideia de reunir o clássico e o popular em um mesmo repertório foi de Moreira Lima, que procurava um bom pretexto para realizar os sonhos de tocar ao lado de seu ídolo confesso, Nelson Gonçalves, e de se apresentar no Teatro Amazonas. Desfilam em um mesmo palco compositores como Chopin, Liszt e Rachmaninov ao lado de Cartola, Herivelto Martins e Noel Rosa.



A turnê deve se estender para o exterior e se prolongar até o final do ano. Mas nem o pianista, agora com 54 anos, nem o cantor, com seus 73 anos, reclamam de esforço. “Só vou parar de cantar quando morrer. Um dos meus maiores orgulhos é a minha voz, que permaneceu intacta depois de tanto tempo”, diz Nelson Gonçalves.



O Boêmio e o Pianista foi gravado ao vivo na estreia do show em Manaus e lançado em disco pela BMG-Ariola. “Já é sucesso”, adianta-se Nelson. A apresentação original sofreu algumas mudanças. “A cada mês damos uma reciclada no repertório. Mas os grandes sucessos permanecem”, avisa o cantor.



O Boêmio e o Pianista- Show com Nelson Gonçalves e Arthur Moreira Lima, no The Gallery (rua Haddock Lobo, 1626. Tel: 881-8833). Hoje e amanhã, ás 21h. Ingresso Cr$ 400 mil (incluindo jantar).


Publicado originalmente no Jornal da Tarde em 14 de outubro de 1992

Manaus vive boemia com Nelson e Arthur

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Manaus vive boemia com Nelson e Arthur



Arthur Moreira Lima e Nelson Gonçalves estrearam no Teatro Amazonas a turnê nacional de O Boêmio e o Pianista, em que atuam juntos pela primeira vez



Lauro Lisboa Garcia



MANAUS- O pianista Arthur Moreira Lima e o cantor Nelson Gonçalves são no mínimo espirituosos. Como dois Fitzcarraldos, em versão bem-humorada e mais modesta, conseguiram transferir o clima de boemia da Lapa carioca para o gigantismo da floresta Amazônica. Sábado à noite a dupla estreou a turnê nacional do show O Boêmio e o Pianista no histórico Teatro Amazonas, tão (ou mais) belo que os Municipais do Rio e de São Paulo.



Arthur procurava argumentos que justificasse sua escolha, pelo simples prazer de tocar no Teatro Amazonas. Encontrou num fenômeno natural da região a imagem exemplar: “É o encontro das águas do erudito com o popular”, disse referindo-se aos rios Negro e Amazonas. Em certo aspecto, o recital do piano clássico mais popular e da voz popular mais clássica do Brasil cumpre a função dos dois rios. São correntes paralelas que não se misturam, ás vezes seguem direção contrária.



O que o Teatro Amazonas tem de beleza (o painel original que serve de cortina ao palco causa impacto imediato) tem de precário na parte técnica. Fechado a maior parte do ano, fez emergir uma série de problemas em ocasiões como essa, que vão desde a afinação do piano até a instalação do sistema de som. Tudo isso executado por pessoas não exatamente profissionais do setor. O bem-humorado Arthur dizia durante o almoço que todo repórter deveria conhecer o afinador de piano, um tal de Evilásio, cujo nome pronunciava sempre seguido de risos frouxos.



No fundo, o pianista com mais de 40 anos de carreira, reservava uma ponta de tensão. Para ele, tocar com Nelson, um de seus maiores ídolos confessos desde sempre, era responsabilidade maior que enfrentar qualquer filarmônica de Moscou ou outras grandes com quem tocou. Dito dessa maneira, parece inacreditável que dois veteranos experientes ainda se estremeçam com estreias. O esquentado Nelson, 73 anos, 54 de carreira, por exemplo, fumava um cigarro atrás do outro.



A tensão inicial deu lugar à naturalidade com que Arthur e Nelson foram se tornando cúmplices e colocando sua técnica impecável à mercê do que se pode chamar de emoção sincera. Black-tie, sem tie (gravata), Nelson desfiou inúmeros sucessos de sempre com uma voz que, surpreendentemente, resiste ao tempo. É um baixo-cantante que emite a voz pelo diafragma, coisa rara entre cantores, gaba-se até hoje. Associa-se a esse dote, o reforço de exercícios respiratórios a 13 tipos de vitaminas que toma todos os dias.



Para o público que foi vê-lo, no entanto, importa a emoção de ouvi-lo num repertório tão óbvio quanto antológico e admirar sua vocalização natural. Vez ou outra a voz torna-se oscilante, mas Nelson, do alto de seus mais de 120 LPs gravados, usa de artifícios convincentes para segurar as notas mais altas. Desafinar jamais. A reação do público é formal, quase fria, o que ele procurar contornar com brincadeiras e conversa séria. Diz que sempre quis fazer um concerto desse tipo e só conseguiu realizar agora por causa da sensibilidade de Arthur trabalhar com a acústica de piano e voz: “Ele é todo ternura”. Quando ofereceu As Rosas Não Falam (Cartola) como cantada “ás moças sonhadoras”, pedia licença aos homens, para depois completar: “Eu sou um velhinho inofensivo”. Nem tanto, mestre. Bastou uma fã mais exaltada procura-lo no camarim para o velho boêmio de assanhar.



Comparando a atuação dos dois nesse encontro, Arthur é mais coringa em sua posição. A pompa circunstancial dos arranjos, de qualquer maneira belíssimos, de Laércio de Freitas davam sinais de que o despojamento de Nelson e de canções como Caminhemos (Herivelto Martins) e Último Desejo (Noel Rosa) não dispensariam malabarismos para se segurar no timing determinado do pianista. Em Último Desejo, voz e piano são quase antagônicos mas chegam, em meio a uma pororoca de teatrilidade de ambos, ao consenso.



Falante, debochado e ao mesmo tempo sóbrio, Nelson não se mexe quase. Arthur faz o oposto, calado e gesticulante. O foco nos contrastes, Arthur não deixa de vingar a música de fronteira erudita-popular. Ninguém melhor que Pixinguinha (Lamento) e Ernesto Nazareth (Turbilhão de Beijos) de um lado e Chopin (Polonnaise) de outro dessa linha. São solos em que o eclético Arthur quase chega ao happening. “A serenata, no fundo, é a sonata dos pobres”, ilustra. Referências de Liszt, Villa-Lobos e Rachmaninov soam em meio a Luiz Gonzaga, Lupiscínio Rodrigues e Lamartine Babo. O ponto alto, porém, é a interpretação de Adiós Moniño, de Astor Piazzola, morto dia 4. A união da beleza clássica da composição com o caráter de homenagem póstuma, mais a moldura do teatro e a interpretação livre de Arthur, levou a plateia às lágrimas, sem exagero.



As variantes de clima vão dos mais rasgados tangos (Carlos Gardel, El Dia em me Quieras, Vermelho 27) às batidas marchinhas carnavalescas (A Jardineira, As Pastorinhas), Arthur, que admira o fato de Nelson sabe de cor mais de 2.500 músicas, teve de improvisar meio sem jeito quando o cantor resolveu cantar Naquela Mesa e Normalista, a pedidos, sem que tivessem ensaiado.



O lugar ideal para esse recital é um teatro, algo em desuso nas grandes cidades e que é um conforto indispensável para o espírito. A turnê de O Boêmio e o Pianista segue até o final do ano por diversas capitais e cidades do interior. Eles já gravam um disco que será lançado no meio da turnê. Em São Paulo, a dupla se apresenta de 13 a 30 de agosto no Palladium. Não se pode ter tudo, mesmo. O silêncio atento ao público amazonense será substituído pelo falatório arrogante da classe média frequentadora de shopping e por aplausos excessivos. Tal demonstração de interesse põe em dúvida os códigos de relação entre palco e plateia. Certa vez, Egberto Gismonti tocou para uma tribo de índios no Xingu e não recebeu um aplauso sequer. Passado o constrangimento, foi saber que o silêncio diante de quem se apresenta a eles era o maior sinal de respeito que os índios tinham a demonstrar. Quem é selvagem?



Publicado originalmente no O Estado de São Paulo em 12 de julho de 1992

Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD

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Nelson Gonçalves regressa à boemia simultaneamente em cinema e DVD



Docudrama narra a trajetória artística e pessoal do ídolo da Era do Rádio

Por Jaime Biaggio

Só a objetividade do documentário talvez acabasse amortecendo as possibilidades dramáticas da história. Só as licenças poéticas da ficção talvez fizessem soar inverossímil uma meia dúzia de lances que parecem inventados (até porque alguns realmente foram, e pelo próprio protagonista). Fato é que o docudrama, um misto de depoimentos e imagens de arquivo com cenas ficcionalizadas, foi o formato escolhido para “Nelson Gonçalves”. Dirigido por Elizeu Ewald e produzido pelo mesmo Diler Trindade dos produtos cinematográficos da Xuxa, o filme, em cartaz exclusivamente no Odeon BR e prestes a sair em DVD, é auto-explicado pelo título.

Auto-explicado, mas jamais auto-resumido. A vida do consagrado ícone da Música Popular Boêmia, morto em 18 de abril de 1998, aos 78 anos, de parada cardíaca, não se resume em duas palavras. Antes de vir para o Rio tentar a sorte como cantor de rádio, o gaúcho Nelson, esquentado desde sempre, tentara ganhar a vida sopapeando os outros como boxeador (jurava ele ter disputado 33 lutas, só perdendo a primeira e a última). Já consagrado, chegou a ganhar um extra como cafetão, a ser preso como traficante, a afundar no vício da cocaína. Todas essas histórias são relembradas na tela em depoimentos de pessoas que conviveram com ele, como Sérgio Cabral, Cauby Peixoto e Arthur Moreira Lima, e na parte ficcional por Alexandre Borges.

- O docudrama foi o formato pretendido desde o início – afirma o diretor. – É um exercício de linguagem fantástico e uma tendência cada vez maior.

Se o formato narrativo do filme é aquele pretendido desde o início, a ideia de levar a história para o cinema é mais recente. “Nelson Gonçalves”, nasceu como série em três capítulos para a TV, tanto que foi todo rodado em vídeo (não o badalado vídeo digital: analógico mesmo). A possibilidade da tela grande nasceu, num típico lance de Nelson Gonçalves, de um contratempo. No caso, a dificuldade de fechar um contrato de exibição com alguma emissora em 1999 (o esqueleto do filme está pronto desde então, o que se percebe nos depoimentos, da cabeça raspada de Lobão, atualmente já coberta novamente por uma cabeleira, à presença do jornalista Albino Pinheiro, falecido exatamente em 1999).

Diretor teve liberdade de tocar em temas delicados

- O projeto teve início no primeiro semestre de 1998- lembra Ewald. – Assinamos o contrato com Nelson duas ou três semanas antes dele morrer. A produção teve início em 1999, com dois meses de pesquisa de imagens de arquivo levou quase seis meses.

O processo, supervisionado por Margareth Gonçalves, filha do cantor, que consta dos créditos como produtora associada, se pautou pela absoluta transparência, algo bastante raro em biografias autorizadas. Como Nelson jamais escondeu os detalhes mais escabrosos de sua vida, como o período de três meses trancado num quarto sofrendo crises de abstinência para se livrar do vício da cocaína, não houve quaisquer saias-justas na apuração dos fatos.

- Sempre deixei claro para o Nelson que era a versão dele, mas que eu teria um papel de autor no filme, decidindo o que entraria e o que seria cortado – diz Ewald, que preferiu centrar o foco na carreira artística. – Mas ele nos deu a liberdade de tocar mesmo em assuntos que não gostaria de lembrar, como no caso da Beth White, a mulher que se matou por ciúme dele.

O suicídio de Beth White é um dos vários episódios da vida de Nelson reproduzidos ficcionalmente pelo diretor. Outras passagens dramatizadas foram a invasão do escritório da RCA, que acabou lhe valendo um contrato de assombrosos 58 anos com a gravadora, e a dura da polícia por estar sem documentos, contornada com a melhor identificação possível para Nelson: a voz.


Publicado originalmente no jornal O Globo em 28 de julho de 2001

Gaúcho 70 no VSP

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São 50 anos de carreira dentro do cinema brasileiro. Virgílio Roveda, o Gaúcho trabalhou nas mais diferentes funções na sétima arte. Nesse agosto ele completa 70 anos de vida. Nesse mês, o VSP irá colocar depoimentos, fotos e textos que falam sobre diferentes períodos da trajetória profissional desse coringa do cinema brasileiro. A maioria das aventuras do técnico sulista na sétima arte estão em sua biografia. O livro-reportagem O Coringa do Cinema, publicado em dezembro de 2013 pela editora Giostri conta parte significativa da trajetória de Roveda.

Das comédias ingênuas aos filmes adultos: José Adalto Cardoso lança seu livro de memórias

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Das comédias ingênuas de Mazzaropi aos filmes adultos de Sady Baby, José Adalto Cardoso possui uma carreira curiosa dentro do cinema paulista. Antes de dirigir suas películas, Cardoso foi assistente de inúmeros realizadores e colaborador da extinta revista Cinema em Close Up. Também atuou como roteirista, montador, assistente de produção e produtor. "O melhor filme [em] que eu trabalhei foi O Quarto da Viúva, do Sebastião de Souza. Nessa produção, minha função era servir café. Assim, eu assistia de camarote a todos os conflitos dos atores e da equipe técnica. Todo mundo batendo cabeça."

Aos 69 anos, o diretor irá lançar sua biografia, Uma Vida em Fotogramas, pela Editora Laços. A obra foi escrita pelo pesquisador Alexandre Aldo Neves e traz a trajetória de um diretor que trabalhou em mais de 25 longas-metragens nacionais dos mais variados gêneros. A VICE conversou com Adalto em Batatais, interior de São Paulo, onde ele mora há anos.

VICE: É verdade que você começou no cinema querendo ser ator?
José Adalto Cardoso:
 Sim. Eu curtia os seriados que passavam no Cine São Joaquim [antigo cinema de Batatais]. Aos domingos, tinha as sessões de seriados, filmes de faroeste, aventura. Eu sempre queria ser mocinho e achava que eu ia dar certo como ator. Mas ainda não entendia de cinema nem tinha noção nenhuma [de] que um dia poderia dirigir algo.

E como você começou a trabalhar com o Mojica?
Mudei para São Paulo quando eu tinha 21 anos. Eu fui morar numa pensão no Brás que era vizinha da sinagoga que servia de estúdio dele. Ele estava na moda em 1967 com o personagem do Zé do Caixão. Tinha um curso de atores dentro da sinagoga, e comecei a frequentar aquele ambiente. Eram as escolas com cursos de atores chamadas de arapucas. Os alunos eram recrutados para atuarem nas próximas produções do Mojica, e o professor era o [ator e produtor] Mário Lima.
Mas eu percebi que eu não agradava como ator e que não tinha nascido para aquilo. Ao mesmo tempo, eu conheci o [Giorgio] Attili [diretor de fotografia], que era meio quietão. Conversávamos sobre lentes, câmeras, equipamentos. Fizemos amizade, e comecei e me interessar por esse outro lado do cinema. Vi que eu podia ser técnico. Fiz alguns dias como assistente de um filme que estava sendo dirigido pelo Mojica [O Fracasso de Um Homem nas Duas Noites de Núpcias]. Essa foi uma filmagem bem complicada, tudo improvisado. Mas ter trabalhado com o Mojica foi bem divertido. Eu comecei no lado mais rústico do cinema, né? Mas foi agradável – e aprendi muito.

Sua carreira na Boca do Lixo ganha força quando você estabelece uma parceria com o diretor Fauzi Mansur. Como começou isso?
Eu estava esperando uma resposta do [cineasta] Ody [Fraga] para ser assistente dele. Nisso, eu fiquei uma tarde esperando num bar que ficava no cruzamento da Rua do Triunfo com a [Rua] Aurora. Mas nada dele aparecer. Nisso, aparece o Fauzi para tomar um café, e começamos a conversar. Aí ele olhou pra mim e me perguntou: "Escuta, qual é o teu signo?". Achei estranho, mas respondi: "Touro". Ele respondeu: "Você quer filmar comigo? Nós vamos começar uma produção". Então, foi uma coisa que surgiu em menos de um minuto de papo. Depois, ele me disse que gostava e estudava esse negócio de astrologia.
Aí comecei a trabalhar no Sedução, que foi meu primeiro longa-metragem com o Fauzi. Esse filme passava-se na década de 1930; então, eu fiquei quase três meses dentro da [biblioteca] Mário de Andrade pesquisando e preparando a parte da reconstituição. O levantamento foi feito, a produção ficou ótima e acho que o Fauzi começou a gostar do meu trabalho.

E depois vocês trabalharam várias vezes juntos.
O Fauzi confiava muito em mim, sabe? Eu era uma espécie de braço-direito dele. Participei como assistente também do Belas e Corrompidas e do Guarani. Nesse último, dirigi a produção também. Eu não fiquei para fazer O Mulherengo, mas dirigi a dublagem. Esse filme é um musical. Por isso, o Fauzi me chamou realizar as compras dos direitos autorais das músicas. Então, eu tive que ir ao Rio de Janeiro e procurar todos os escritórios que representavam os compositores das músicas do filme. O Fauzi é um diretor talentoso e versátil. Isso você pode ver pela variedade de gêneros que ele trabalhou na filmografia dele.

Você trabalhou em dois filmes com o Mazzaropi. Como foi isso?
Trabalhei num roteiro para o Pio Zamuner [cineasta e diretor de fotografia dos filmes do Mazzaropi]. Nisso, criamos uma proximidade e ele acabou me chamando para eu trabalhar de assistente de direção do Cláudio Cunha no Clube das Infiéis. Depois desse filme, o Pio foi fazer O Jeca Macumbeiro, do Mazza, com outro assistente de direção. Mas, depois de uma semana de filmagem, esse assistente desistiu e acabaram me chamando. Então, eu devo muito ao Pio por ter tido essas chances. Eu sempre tive uma admiração muito grande pelo Pio. Depois, acabei trabalhando também no Jeca Contra o Capeta.
O Mazza era muito sério com os negócios dele. Se você combinasse uma coisa com ele, nem precisava assinar porque ele sempre cumpria a parte dele. E sempre respeitava os profissionais que trabalhavam com ele.

Como você começou a colaborar na Cinema em Close Up?       
Eu conheci o Minami [Keizi, editor da revista] pelo Jean Garrett [cineasta]. Não sei o motivo, mas o Jean me levou numa tarde na casa do Minami, que ficava na região do Butantã [zona oeste de São Paulo]. Na época, ele estava com um projeto de uma revista sobre cinema brasileiro. Existiam diversas publicações sobre cinema estrangeiro, mas nenhuma sobre a produção nacional. Criei uma boa empatia com o Minami e ele pediu para eu escrever alguns livros baseados em roteiros da Boca. Fiz também alguns livros de ficção que ele vendia por reembolso postal. Tive vários pseudônimos. Um dos mais famosos foi Thais de Alencar.
Depois, nasceu a Cinema em Close Up, e eu acompanhei toda vida da publicação. O Minami inclusive abriu um escritório da editora dele na Boca.

Uma das coisas mais legais da Close Up foram dois anuários do cinema brasileiro que a revista fez.
A ideia foi minha desses anuários. Fiz tudo aquilo sozinho, acredite se quiser. Eu cheguei no Minami e falei: "Vamos fazer um anuário?". Ele me perguntou: "Mas como?". Então, eu fui à Embrafilme, comecei a pegar todas as publicações que existiam sobre cinema brasileiro, indicações de atores, técnicos. Aí eu consegui fazer a primeira edição em 1974 e passei a atualizar ano a ano. As universidades de cinema usam esses anuários como referência até hoje.
Foram dois anuários, e não existe nenhuma referência à minha pessoa. Na época, eu não me preocupava com isso. Coisa [de] que me arrependo hoje. Foi um trabalho desgraçado, fiz uma garimpagem legal. Tem algumas falhas, mas é um trabalho [de] que eu tenho certo orgulho de ter feito.

Cinema em Close Up pagava bem ou mal?
Muito mal. Ele pagava por lauda, né? E pagava muito mal. Mas eu nunca me preocupei com dinheiro. Eu queria fazer. Esse foi um dos grandes erros na minha trajetória. Sou realizado profissionalmente, mas muita gente ganhou dinheiro em cima de mim. Porque, na época, eu trabalhava por qualquer preço – e tudo bem. Eu queria fazer. Mas, na época, fiquei feliz e foi bom. Não tenho de reclamar de nada. Eu aceitei as regras do jogo.

Dos seus filmes, de quais você mais gosta?
Não gosto dos primeiros. Por exemplo, E...a Vaca foi pro Brejo ficou longo e com partes truncadas. Já o meu terceiro filme como diretor (O Motorista do Fuscão Preto) ficou melhor, mais bem acabado. Massagem For Men era um filme livre, mas tivemos de colocar cenas de sexo explícito para ser lançado. Foi inclusive essa a única vez [em] que trabalhei com o Antônio Ciambra [diretor de fotografia]. Considero-o o melhor fotógrafo com quem trabalhei. O Motorista e o Massagem, acho que ficaram os melhores.

No seu livro, você não fala muito sobre seus filmes explícitos. Por quê?
Eu acredito que esses filmes não acrescentam nada na minha carreira. Foi algo que eu fiz porque não tinha opção. Mas eu não renego. Tanto que assinei todos os meus filmes sem pseudônimo. Muita gente boa acabou fazendo explícito porque não tinha opção. A gente queria continuar na área. Por exemplo: o Alfredinho [Sternheim, cineasta]) é um gênio. Eu o respeito muito. Ele mesmo teve de fazer esse tipo de trabalho pra ficar ativo. Teve um filme meu dessa época que rodamos numa chácara em oito dias [refere-se ao filme As Taras de Um Puro Sangue], aí não é mais cinema. É outra coisa.

O lançamento de Uma Vida Em Fotogramas acontece em São Paulo, na próxima segunda-feira (dia 10), ás 19h, no Centro Universitário Belas Artes, que fica na Rua Doutor Álvaro Alvim, 90, Vila Mariana.


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