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O diretor de Coisas Eróticas

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Por Denise Godinho e Hugo Moura

Em uma tarde do verão de 1979, Raffaele Rossi entrou de cabeça erguida no bar Soberano. O botequim tinha sido inaugurado em 1961 no número 155 da rua do Triunfo. Era no balcão de sete metros de extensão, logo na entrada, que os cineastas da Boca do Lixo paulistana se reuniam para conversar sobre cinema, o cachê da nova estrela que perambulava nas redondezas ou o jogo de futebol da noite anterior. É verdade que, em muitas ocasiões, o bar se estendia até a rua, porque os grupos de frequentadores ficavam na calçada, os copos americanos repletos de cerveja em suas mãos. O salão do fundo abrigava 12 mesas, cada uma delas rodeada por quatro cadeiras. Ali era servido o tradicional almoço, desde o concorrido bacalhau na brasa até o frango com polenta. O proprietário, Serafim, cuidava de manter seus clientes entretidos com os copos cheios. De vez em quando, até arriscava um número de mágica com o baralho engordurado que ficava em cima do balcão. Em geral, o Soberano era parada obrigatória de técnicos, atores, diretores e produtores que trabalhavam na região, embora todos eles se misturassem também a prostitutas e traficantes que prestavam seus árduos serviços nas redondezas. Raffaele Rossi não costumava frequentar o bar, apesar de trabalhar por ali fazendo justamente cinema. O cineasta italiano era tímido e, embora conhecesse todos, nunca tomava a iniciativa para uma conversa; como as pessoas raramente o chamavam, ele entrava e saía do bar de cabeça baixa. Com exceção daquela tarde calorenta.

O italiano entrou dando passos firmes e largos sob olhares desconfiados. Afinal, ele devia dinheiro ou favores a parte daqueles que almoçavam ali. Serafim estranhou a presença de Raffaele no boteco, embora não tivesse nada contra ele. Todas as pouquíssimas ocasiões em que o diretor havia consumido algo do bar, tinha pago certinho e, ás vezes, chegava até a deixar alguma gorjeta. Raffaele deu de ombros e partiu quase farejando mesa por mesa em busca de alguém ou alguma coisa em cada canto o botequim. Foi lá no fundo, depois das três colunas que enfileiravam e dividiam as 12 mesas do restaurante e, sob o barulho das conversas paralelas, que o diretor avistou o amigo Laerte Calicchio saindo do banheiro e enxugando as mãos nas próprias calças. Partiu como um foguete em direção a ele. Antes que Laerte pudesse perguntar o que o amigo estava fazendo ali, já tinha sido puxado pelo braço em direção à calçada onde outro amigo, Walmir Dias, os esperava, com o mesmo olhar de espanto e dúvida estampado no rosto.

Raffaele partiu na frente, em direção ao lado sul da rua, deixando no ar a ideia de que os dois deveriam segui-lo – e foi o que fizeram. Não entendiam o que estava acontecendo e também não podiam questionar entre si, porque o fôlego era suficiente apenas para manter o passo apressado que o amigo impunha a eles. Quase o perderam de vista quando entrou à direita na rua Vitória. Sacaram que estavam sendo levados para a Empresa Cinematográfica Rossi, localizada na rua dos Andradas, paralela à rua do Triunfo, quase de quintal com o bar Soberano.

Ele subiu os quatro lances de escada de dois em dois degraus. Se fosse possível adivinhar o que se passava nas cabeças de Laerte e Walmir, de certo supunham alguma má notícia. Mas Raffaele estava sorrindo quando buscou cada um deles. Estava? Não lembravam mais. Poderia ser um processo que alguém da Boca abrira contra ele. Afinal, não seria a primeira vez. Laerte chegou a esbravejar para si mesmo entredentes que não tinha mais idade para aquilo!

Raffaele parou na escada e se arqueou, debruçando as duas mãos nos joelhos. Respirava com dificuldade e esperava lentamente que os batimentos cardíacos voltassem ao normal. Enquanto isso, os amigos já o haviam alcançado.

- Vamos até a sala, não é nada ruim, eu prometo- disse ainda com a voz rouca e pausada.

Eles andaram em silêncio alguns metros em direção à porta de madeira que dava acesso à salinha do diretor na produtora. Era um cômodo de cerca de dez metros quadrados em um prédio residencial, onde prostitutas disputavam espaço entre malandros, cavalheiros neurastênicos e idosas decadentes que acompanhavam, com desprezo, o fluxo contínuo de visitantes em seus aposentos. Não existia luxo nenhum, mas era o que Raffaele poderia pagar. O prédio por si só fazia jus ao apelido Boca do Lixo, mas não era pior nem melhor que outros edifícios na região. A saleta alugada tinha documentação em dia, mas não passava de um espaço maltratado e organizado apenas por um sofá de tecido marrom antigo na parede central e uma mesa de ferro com quatro cadeiras. Em um dos cantos, os equipamentos eram empilhados e cobertos por uma grande lona azul. Do outro lado, um filtro de água feito de barro se equilibrava em um banquinho perneta.

Todos se sentaram-se à mesa. Laerte folheou uma revista Manchete que estava à sua frente, mas não teve tempo de apreciar uma foto ou ler uma linha de alguma reportagem, pois Raffaele arrancava de supetão e com violência a publicação de suas mãos. Abriu a revista e virou folha a folha, procurando algo. Dobrou-a ao meio e jogou na mesa a Manchete aberta na página em que uma reportagem falava sobre um filme japonês com cenas de sexo explícito que chegaria ao Brasil em breve. Laerte e Walmir se espremeram e passaram juntos os olhos pelas linhas do editorial. O diretor decerto se divertia com a situação quando se apoiou no encosto de uma das cadeiras que rodeavam a mesa e passou a observar os amigos. Eles pareciam não entender nada.

- Temos que fazer isso. É a oportunidade de nos darmos bem!- profetizou.


Publicado originalmente em GODINHO, Denise & MOURA, Hugo. Coisas eróticas: a história jamais contada da primeira vez do cinema nacional. São Paulo: Panda Books, 2012.  

Aquelas coisas eróticas

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Por Denise Godinho e Hugo Moura

A princípio, Raffaele Rossi tinha apenas uma ideia e talvez até contasse secretamente com o apoio dos amigos. Laerte Calicchio, apesar de parecer o mais consciente deles, caiu em uma crise de riso prolongado que durou longos segundos. Ria desesperadamente porque sabia que não seria fácil convencer o amigo do contrário. Estava louco? Apesar de viverem uma abertura política, a censura ainda existia. E estava escrito ali, naquela mesma revista, que o tal filme japonês, produzido três anos antes, enfrentava resistência do governo para ser exibido o país. Imagine um filme nacional! Além do mais, Raffaele vivia produzindo com baixo orçamento e seu dinheiro quase nunca era suficiente para um filme. Naquele momento estavam filmando Boneca cobiçada com a estrela da época, Aldine Müller. “Mas não, ele nunca está satisfeito” – esbravejava. Walmir concordava com tudo o que Laerte aprontava quase que didaticamente ao amigo. Não era o momento de mexer com uma produção desse nível. Ora, sexo explícito em um cinema? E ainda cobrar ingresso? Laerte não acreditava na empreitada e achava que seria um trabalho que poderia leva-los a cadeia ou, no mínimo ao fracasso.

Talvez fosse mesmo, para a realidade do Brasil na época. Fora do país, o mundo já havia visto na telona, quase dez anos antes, o que aqui, aparentemente, só se fazia entre quatro paredes. O clássico Garganta profunda, de 1972, dirigido por Gérard Damiano, revolucionou o cinema americano contando a história de uma mulher que tinha o clitóris na garganta. A obra impulsionou outras produções do gênero, como Atrás da porta verde, daquele mesmo ano, dirigido pelos irmãos Mitchell, Artie e Jim, e O diabo na pele de miss Jones, de 1973, também de Damiano. Todos eles se tornaram referência do estilo cinematográfico já no início da década de 1970, assim como o também revolucionário e aclamado pela crítica Império dos sentidos, aquele tal filme japonês produzido em 1976 pelo diretor Nagisa Oshima.

Raffaele Rossi ouviu todos os contras com atenção, tirou o pente fino de plástico marrom do bolso da camisa e penteou os cabelos emplastrados de brilhantina divididos para o lado. Cada movimento era feito pausadamente, como se, enquanto se mexesse, estivesse degustando os conselhos lançados pelos amigos aflitos.

- Mie amici, eu não quero fazer um pornô. Eu quero apenas inserir uma cena pornô em Boneca cobiçada.

Até então, o brasileiro havia se contentado com os inocentes mamilos descobertos de atrizes como Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Zaíra Bueno e Débora Muniz. Prestes a entrar na década de 1980, o país já andava lentamente para uma abertura democrática depois de anos de chumbo quente em cima das manifestações artísticas.

Durante a década anterior, qualquer música, peça teatral, jornal ou filme que incitasse uma interpretação política sobre o contexto que o país vivia, caía no corte. A nudez, por sua vez, servia como uma via de escape. Enquanto as pessoas estivessem se masturbando nos cinemas, não explodiriam bombas pelas cidades. Embora antirrevolucionário, o nu ainda era o guardião dos maus costumes e, por isso, deveria ser castigado. E foi. Retaliar os filmes de pornochanchada virou praxe e, ás vezes, eles se tornaram incompreensíveis, tamanho o corte da censura. Tudo porque, aparentemente, não era permitido mostrar dois seios de uma só vez, de acordo com determinada portaria do Conselho Superior de Censura. Era como se os censores se divertissem durante as sessões: “Vamos liberar um mamilo só”.

É claro que uma cena explícita não passaria facilmente pelos censores. Pelo menos, ainda não naquela época. Raffaele sabia disso, mas a adrenalina de enfrentar o Departamento de Censura e a dona Solange Hernandes, a temida chefe da tesoura, que não perdoava nem a mais pura das cenas eróticas, fazia a expedição cada vez mais excitante. Para ele, a censura era burra e bastava algum truque para que a permissão fosse carimbada nos usuais documentos de liberação. Foi o que ele fez. O diretor, espertamente, usou um truque de luz para disfarçar a penetração do ator Oásis Minniti em Vânia Bonier. A filmagem, feita à contraluz, pouco mostrava e deixava a cena subentendida. Apesar de implícita, essa pode ser considerada a primeira cena de sexo explícito do cinema brasileiro.

Para alívio de Rossi, Boneca cobiçada estreou em junho de 1980, oito meses depois de o filme japonês entrar em cartaz.

Eram lindas aquelas mulheres nos cartazes dos filmes. A pele tinha um bronzeado inalcançável em plena capital paulistana. As saias estampadas, geralmente rodadas, ou bem justas com fendas laterais, pouco mostravam, mas davam pistas sugestivas do que cobriam. Em meio à correria cotidiana na agitada São Paulo, é provável que muitos homens tenham ficado com torcicolo ao se afastarem, do cinema enojado pedindo o dinheiro de volta. Para Raffaele, os espectadores não queriam sentir nojo de sexo. Muito pelo contrário, sexo deveria ser excitante.

Era 15 de outubro de 1981, uma quinta-feira. A reunião estava marcada para as quatro horas da tarde, no escritório da Empresa Cinematográfica Rossi. Laerte organizava os rascunhos escritos durante a noite anterior em uma pasta. Pelos seus cálculos, aquele enredo duraria cerca de quarenta minutos. Era a história de dois casais que se conheciam por um anúncio de jornal para amantes de swing. Sabia que agradaria a Raffaele, embora sentisse um misto de empolgação e medo gelando sua barriga. Em decisão prévia, o diretor havia dito que, para economizarem recursos, o filme teria três capítulos, cada um com uma história diferente. Laerte era o convidado para escrever e dirigir uma delas. Era a primeira vez que essa oportunidade se apresentava a ele. Em Boneca cobiçada havia trabalhado como assistente de direção e, nos créditos finais, nem seu sobrenome havia sido mostrado.

Laerte apanhou uma a uma as folhas que, encardidas pelo manuseio de seus dedos sujos graças à fita da máquina de escrever, exibiam a história elaborada durante toda uma madrugada regada a café e a um maço inteiro de Hollywood. Enquanto as organizava na pasta, relia frases desconexas que eram fisgadas por seus olhos vigilantes.

Enquanto isso, Raffaele andava pela rua do Triumpho em direção ao escritório. Apreensivo com a reunião que se seguiria, estava cabisbaixo e com os ombros protegendo o pescoço. Desligou-se do mundo prestando atenção à rotina cíclica de seus pés a cada passo dado – um na frente do outro. Não reparou quem vinha andando em sua direção, animada, com o sorriso largo sempre a postos para cumprimenta-lo.

No fim da década de 1970, Vanilda Ana Plácido, então com vinte anos, trabalhava em uma revendedora de veículos na avenida Rio Branco, no Centro de São Paulo. A catarinense já vivia na cidade havia cinco anos. Suas formas arredondadas e bem distribuídas, seu sorriso ruidoso e seus cabelos longos e negros chamaram a atenção de um professor de artes da Universidade de São Paulo. Ele a convidou para ser modelo vivo em uma aula sobre as formas do corpo humano. A ideia era que ela ficasse nua em frente aos alunos para que eles aprendessem a desenhar o corpo humano em diferentes situações. Como o rosto se movimenta ao chupar uma laranja? Como as pernas se flexionam quando abaixamos para pegar uma caixa?

Ela aceitou a proposta com a condição de que não precisasse largar o emprego. E ficaram combinados que ele marcaria as aulas nos momentos em que ela estivesse livre. Vanilda gostou do trabalho e o fato de conseguir ficar horas congelada em uma posição logo chamou a atenção do grupo de teatro do campus, que a convidou para participar de uma peça. A partir dali, Vanilda passou a rodar São Paulo fazendo teatro amador. Em uma dessas apresentações, um produtor da rua do Triumpho a chamou de canto e perguntou-lhe se ela gostaria de fazer cinema.

Vanilda adotou Vânia Bonier como nome artístico, e em 1980 estreou nas salas de cinema nacional com a produção O império das taras, dirigido por José Adalto Cardoso. É irônico pensar que ela trabalhou durante cinco anos na avenida Rio Branco, próximo à rua do Triumpho, e só entrou para o cinema depois de topar ser modelo vivo no Butantã, um bairro distante da efervescência cinematográfica.



Raffaele Rossi sempre achou graça no jeito ingênuo de Vânia se portar. Ela havia acabado de entrar para o cinema e fazia questão de conversar com todos para manter próximas a ela as oportunidades de convites para outras produções. Por isso, não pensou duas vezes ao pega-lo pelo braço e leva-la à reunião que aconteceria em breve no escritório. Durante o caminho, adiantou que estava prestes a fazer um filme que entraria para a história do cinema e que ela não poderia perder a chance de participar dele.

A equipe sentia algo entre ansiedade e receio da aventura. Raffaele Rossi acalmava os ânimos usando o filme Império dos sentidos como exemplo. “Se ele foi liberado, o nosso também vai ser”, tranquilizava, ainda que todos ali soubessem que a produção japonesa havia sido liberada sob a justificativa de que era um filme de arte, e exclusivamente para o festival.

Laerte contou resumidamente a sua história antes de mostrar os papeis rascunhados. Diante de bocas entreabertas e sobrancelhas arqueadas, ele leu o roteiro até o último ponto final. A história era repleta de palavrões, sadomasoquismo, cenas homossexuais e sexo grupal. Laerte pôde sentir um frio percorrer toda a sua espinha depois de segundos de silêncio daqueles que o olhavam perplexos. Era o esboço de um dos capítulos e eles nem sequer imaginavam qual seria o enredo dos outros dois. Raffaele se levantou da cadeira, penteando os cabelos emplastrados.

- Pensou em um nome para esse capítulo?- perguntou.

- “Coisas eróticas”.

- “Coisas eróticas” ? - indagou, arqueando uma sobrancelha.

- É, já que o episódio é cheio de coisas eróticas – explicou Laerte, gaguejando.

Raffaele prosseguiu penteando os cabelos, ignorando o fato que os fios já estavam perfeitamente alinhados, e passou a andar em círculos sob silêncio, receoso daqueles que aguardavam uma reposta para o título sugerido por Laerte. O próprio autor imaginava que não tinha tido uma boa ideia e tratava de buscar mentalmente outros possíveis nomes para arrematar a crítica que de certo viria. Mas, para a surpresa de todos, ela não veio.

- “Coisas eróticas” – o diretor rompeu o silêncio da saleta soletrando cada sílaba pausadamente como se degustasse a sensação que as duas palavras juntas provocaram. – É isso Laerte! Achamos o título o título! O filme inteiro deve se chamar Coisas eróticas.

A primeira filmagem começaria no dia seguinte.  

Publicado originalmente em GODINHO, Denise & MOURA, Hugo. Coisas eróticas: a história jamais contada da primeira vez do cinema nacional. São Paulo: Panda Books, 2012. 


E assim conheceram as maravilhas do sexo

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Por Denise Godinho e Hugo Moura

Era comum, que na Boca do Lixo, os cineastas se preocupassem em como fazer a publicidade dos filmes. Principalmente porque havia grande demanda de produções brasileiras graças à lei da obrigatoriedade, como será explicado mais à frente. Assim, era preciso haver destaque nas portas do cinema para que o espectador escolhesse tal filme e não outro. A falta de recursos para investimentos em publicidade fazia com que os cartazes fossem os únicos responsáveis pela propaganda e, geralmente, eles eram apelativos e podiam até não demonstrar relação com o enredo da produção. Além disso, os pôsteres de filmes da Boca, quando realizados por diretores consagrados, eram ilustrados pelo traço inconfundível de Benício, o artista mais requisitado nessa missão e que intensificava a formosura das belas atrizes da época. Raffaele não havia sequer cogitado o desenhista. Afinal, com que dinheiro ele poderia pensar nisso?

Quando o cineasta teve a ideia de aproveitar a fresta que Império dos sentidos tinha aberto, surgiu também a preocupação em tornar a sua nova empreitada algo chamativo aos olhos dos apreciadores de cinema. Afinal de contas, estes deveriam ser fisgados pelo cartaz ainda antes de comprar o ingresso. A bem da verdade, após sua primeira semana de exibição, Coisas eróticas não necessitaria mais do pôster para chamar a atenção do público.

O único material de divulgação do filme trazia uma morena deitada de costas, tomando sol à beira do que se supõe ser uma piscina. O grande foco é a bunda arrebitada, bem torneada e bronzeada. No alto, com erros estranhos de pontuação, lê-se “...E assim! Conheceram as maravilhas do sexo!...”. Embaixo, o título Coisas eróticas.

Quem das atrizes teria sido incumbida da honra de ilustrar o cartaz? Essa simples dúvida se transformou em um enigma desvendado diversas vezes.



Publicado originalmente em GODINHO, Denise & MOURA, Hugo. Coisas eróticas: a história jamais contada da primeira vez do cinema nacional. São Paulo: Panda Books, 2012.  

O sucesso e a decadência de Raffaele Rossi

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Por Ruy Martins Sanches

Com milhões no bolso, Raffaele Rossi estava realizado. Para alguns amigos, a fortuna reacendeu o brilho dos seus olhos azuis e a pele clara de seu rosto. Os passos acabrunhados que demonstrava ao caminhar pelas calçadas da Boca desapareceram. Livre do peso da responsabilidade de garantir o sustento da família, agora mais numerosa, Rossi era outro. Seu futuro também. Altivo, mas não orgulhoso. E mais próximo e mais compreensivo com aqueles que o procuravam. Francisco Cavalcanti, José Mojica Marins e João Manuel Baptista concordam – Raffaele Rossi deu a mão a muita gente depois que ficou rico. “Depois que o Mazzaropi morreu, ele ajudava muita gente que trabalhava na PAM”, diz Francisco Cavalcanti, produtor, diretor e ator de diversos filmes na Boca paulista.

Na companhia de Renata e do filho Eduardo, embarcou para a Itália meses após a confirmação de ser o número um na lista do cinema brasileiro. Finalmente proclamara sua independência! E a vontade de rever sua terra natal, sua humilde residência e os parentes e conhecidos da saudosa Sant´Arsenio foi a primeira das vontades que o dinheiro conseguido, depois de vencer tantos problemas e tantos preconceitos, pôde lhe proporcionar.

Quando voltou, o gênero pornô já fazia rotina da Boca do Lixo. Os exibidores não queriam outra coisa para mostrar. Sexo explícito era o que dava dinheiro, era o que mantinha as salas cheias, o lucro fácil. Então, com muito dinheiro no bolso, Rossi associou-se a Francisco Lucas, proprietário de dezenas de salas de exibição no centro de São Paulo, para a produção de dois pornôs: Império do Pecado e De Todas a Maneiras, ambos dirigidos por Marcelo Motta, em 1981 e 1983, respectivamente.

Com tempo para desfrutar os prazeres que a vida lhe negara até estourar na bilheteria com Coisas Eróticas, Rossi resolveu inovar. E investir numa antiga paixão: o futebol. Palmeirense e amigo de vários jogadores de futebol, alguns dos quais inclusive no financiamento de alguns de seus filmes, Rossi funda um clube de futsal- o Grêmio Recreativo Rossi. A sede era localizada em sua casa, no sítio que comprara em Embu-Guaçu, nas cercanias de São Paulo, e para onde se mudara com esposa e filhos logo após o estrondoso sucesso de seu filme. Rossi frequentemente excursionava com a equipe dentro e fora do Brasil e da qual faziam parte três jogadores paraguaios pertencentes à seleção vice-campeã mundial de futsal daquele país. E bancava as festas e banquetes que se seguiam após as vitórias ou as derrotas, tanto fazia. A essa altura a vida de Rossi era sempre uma celebração. Entre uma partida de futebol e outra, Rossi ainda realizou uma continuação de Coisas Eróticas, que chamou espertamente de Coisas Eróticas II (1984), obviamente a fim de capturar o mesmo público que havia lotado alguns anos antes as salas de exibição para ver aquele que é considerado o primeiro pornô nacional.

Com a maior parte das salas de exibição do país inundadas por produções de baixíssimo nível e a invasão de pornôs estrangeiros o sucesso de Rossi não continuou. Coisas Eróticas 2, mesmo contando com algumas estrelas da Boca como Jussara Calmon, Marília Nauê e o casal erótico Eliana e Walter Gabarron, não obteve o sucesso que ele esperava, registrando oficialmente pouco mais de 1,1 milhão de espectadores. Ainda assim ocupando a quinta maior bilheteria do ano. A rotina de voltar a competir com produtos semelhantes ao seu ameaçava sua competência de realizador novamente. Então, com a introdução do videocassete no mercado brasileiro, Rossi muda o foco e abre, em companhia dos filhos, sua própria distribuidora de vídeos, a fim de comercializar suas películas. A Rossi Vídeo também é responsável pelo lançamento comercial no país do filme Je vous salue, Marie (Jean-Luc Godard, 1985); meses depois perde a batalha judicial travada com os distribuidores americanos pela distribuição de outro título polêmico da década: A Última Tentação de Cristo (Martin Scorsese, 1988).

O prazer pelo futebol leva Rossi a associar-se na produção de A Pelada do Sexo (1985) de Mário Lúcio. Mesmo com o sexo explícito dentro de campo, o público não compareceu e o filme fracassou. Mas Rossi não é de desistir facilmente e tenta mais uma vez ainda com um filme igual aos outros. Em 1987, produz e dirige Gemidos e Sussurros. De novo um filme em episódios no qual trazia o nome da atriz Zaíra Bueno. E de novo um filme seu passara despercebido, como muitos outros produzidos na Boca do Lixo naquele ano. A competição com os filmes nacionais e estrangeiros do mesmo gênero, além da proliferação de locadoras de vídeos e dos videocassetes já instalados na sala de estar de milhares de lares brasileiros era árdua. O filão lucrativo que ele mesmo iniciara estava se esgotando, para desespero de muitos. E o pior: começara a trazer sérias preocupações aos realizadores que enxertavam seus filmes com cenas de sexo sem o consentimento dos envolvidos nas filmagens. (...)

Enquanto sua união com Maria Cândida desmoronava, Rossi ainda desfrutava das festas e das viagens que empreendia em companhia de seu time de futebol. Era o começo de seu amargo fim. E também o início daquela que é considerada a primeira indústria brasileira de filmes independentes, que fez o que pôde para manter-se na ativa até ser engolida pelo monstro que ele mesmo ajudara a criar. Raffaele Rossi morreu do mal de Alzheimer no dia 5 de novembro de 2007, na única propriedade que lhe restava, o seu pequeno sítio em Embu-Guaçu. Ao seu lado, naquele momento, estavam sua primeira esposa Davina, de quem nunca se separou oficialmente e dois de seus filhos – Rafael e Eduardo, além do caseiro Benedito.


Publicado originalmente na dissertação de mestrado O homem que calou a Boca: uma análise da obra de Raffaele Rossi de Ruy Martins Sanches defendida na Universidade Anhembi Morumbi em 2013.

Superfêmeas em maio

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Durante o mês de maio, o VSP presta uma homenagem para as musas do cinema paulista. São perfis inéditos publicados em um trabalho acadêmico que o blog teve acesso com exclusividade. Cada sábado de maio uma atriz com passagem marcante pela rua do Triunfo será homenageada. Vale a pena a leitura.

Feliz aniversário José Adalto Cardoso

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Assistente de direção, cineasta, roteirista. José Adalto Cardoso foi um profissional de destaque na rua do Triunfo. Colaborador da revista Cinema em Close Up, tornou-se um empenhado assistente de nomes importantes da produção paulista como Fauzi Mansur. Tempos depois, tornou-se realizador de diversos longas-metragens. Atualmente, Adalto reside em Batatais, interior de São Paulo. O VSP deseja a ele todas as felicidades nesta data especial

Superfêmeas I: Noelle Pine

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NOELLE PINE
A militante da Boca



Por Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo

Era apenas mais uma tarde de um sábado nublado no centro de São Paulo quando Noelle Pine, com mais duas colegas de trabalho, Vanessa Alves e Débora Muniz, estouraram um chamapanhe Salton na rua do Triunfo, ás 15 horas do dia 26 de junho de 2014 e afastaram os fantasmas das calçadas que antigamente eram passarelas de estrelas do cinema nacional e hoje são ocupadas somente por viciados à mercê do tempo.

Para chegar a esta cena final de novela das 21 horas, a musa, conhecida por seu profissionalismo, teve de atravessar o Atlântico para perceber a importância da Boca do Lixo e do cinema nacional em sua vida. Noelle morou 18 anos na Espanha e, inclusive, chegou a escrever uma peça de teatro chamada “Com los pelos de punta” (2003). A comédia retrata um grupo de mulheres que se encontram em um salão de beleza e conversam a respeito de suas vidas. Em determinado momento, elas descobrem que a grama do vizinho não é tão verde quanto parece, e suas verdadeiras histórias são reveladas.

A chance de Noelle se tornar uma atriz conhecida mundialmente ocorreu durante uma estranha escolha de teste. O papel disputado era para interpretar uma personagem um tanto inesperada para uma mulher...um travesti. Mas o surpreendente mesmo é que o filme não era de qualquer um. Era de ninguém menos que o cineasta espanhol vencedor de dois Oscars, Pedro Almodóvar. Bom, não foi nenhuma surpresa quando um verdadeiro travesti foi convidado a participar. Mesmo assim, ela conta a experiência como uma vitória apenas por ser escalada para as audições.

Noelle voltou para o Brasil em 2008. Já formada em fotografia, e tendo a área como profissão principal, passou a dedicar os últimos esforços para revitalizar o único polo que lhe abriu as portas sem pestanejar: a Boca do Lixo. Ainda enquanto estava na Espanha, ela elaborava planos para recuperar as memórias daquela região. Sua inspiração estava na forma como a cultura cinematográfica é valorizada em países europeus, enquanto na Terra do Carnaval e Futebol o passado – e até mesmo o presente – do cinema nacional é deixado de lado.

Além de ter um livro lançado sobre os bastidores (“Luz, cama, ação! – Hollyboca”, 2013) e outro engatilhado sobre a vida pós-pornochanchada de algumas atrizes, a musa se juntou a dois produtores, Rafael Spaca e Paulo Faria, para dar início ao projeto que quer proporcionar um novo fôlego ao gênero e reunir velhos amigos de uma época de outro: o Museu do Cinema e tombamento histórico da Boca do Luxo.

No Facebook, o movimento intitulado “Triunfo, a volta” tem atraído cada vez mais adeptos. São atores, atrizes, produtores, cinegrafistas, diretores, maquiadores e figurantes da Boca, além de entusiastas das produções feitas por lá. O objetivo é trazer o espírito artístico e cultural da rua que, para os que conhecem a sua história, ainda emana vagamente pelas esquinas daquele lugar. Porém, a produção de audaciosas 100 pornochanchadas por mês não tem volta.

Se os filmes sumiram pela falta de interesse do público – “para que assistir algo cômico com pitadas eróticas se eu posso ver sexo explícito em pornôs estrangeiros ?” -, a militante aponta ainda a falta de profissionais reais. Há 59 aos carregando o vírus da arte em seu corpo, Noelle foi uma das poucas atrizes de pornochanchada a serem formada na área. As outras protagonistas e coadjuvantes eram convidadas enquanto caminhavam pela região apenas por serem...gostosas.

A ideia concreta do memorial surgiu em uma entrevista dada em março de 2014 para a TV FATO, no tradicional café Girondino, point dos produtores e diretores da Boca. O trio responsável pela empreitada decidiu que o objetivo não é trazer a pornochanchada de volta, mas sim que a Boca não se cale. Que o seu legado não seja esquecido no tempo, mesmo que exista quem negue o seu envolvimento com a rua do Triunfo. Mas Noelle sempre se pergunta: como é possível negar um passado de glória? Por acaso temos como apagar nosso passado? Nossos pais, nossos filhos? Não.

O chute inicial para o tombamento da Boca do Lixo como patrimônio histórico-cultural foi dado e o jogo já começou. O time tem cada vez mais convocados dispostos a defender o ataque dos antipornochanchadas. As musas, como Noelle, saíram dos seus postos de líderes de torcida e foram para a linha de ataque, cada uma dando o melhor toque na bola. Spaca e Faria já deram o grito de guerra, enviando a proposta para o Ministério da Cultura. A partida vai ser difícil, mas todos os jogadores já estão preparados para enfrentar os maiores adversários.

- Quando podemos viver do que gostamos de fazer, tudo tem o gosto de satisfação e realização, tornando-se um privilégio. A Boca pra mim foi isso, fazer o que eu amava, aprender com quem eu sabia e atar nós em laços de amizades que perduram até hoje -, é o que Noelle diz.




FICHA TÉCNICA
Nome completo: Áurea Ramos César
Nome artístico: Noelle Pine
Data de nascimento: 19 de agosto de 1955
Naturalidade: Brasília de Minas, Minas Gerais

Principais bilheterias de pornochanchadas:
“Chapeuzinho Vermelho, a gula do sexo” (1980), Marcelo Motta
“O rei da Boca” (1982), Clery Cunha
“Anúncio de Jornal” (1984), Luiz Gonzaga dos Santos

Outros trabalhos relevantes:
“Hotel puramente familiar” (1982), peça de teatro de Emanoel Rodrigez
“Vida roubada” (1983), novela SBT
“CVV, boa noite” (1986), peça de teatro de Roberto Nogueira
“Com los pelos de punta” (2003), peça de teatro de sua autoria
“Luz, cama, ação! – Hollyboca” (2013), livro de sua autoria

Onde vive hoje: Mogi das Cruzes (SP)

O que faz hoje: fotógrafa e atriz 

Publicado originalmente no trabalho acadêmico Superfêmeas- as mulheres que fizeram a história da pornochanchada de autoria de Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo, publicado como trabalho de conclusão do bacharelado em jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo em 2014.


Superfêmeas II: Vanessa Alves

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VANESSA ALVES
A virgem da Boca



Por Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo.

Zilda Cristina Alves Pinto, ou melhor, Vanessa Alves, conheceu o mundo artístico com apenas quatro anos de idade. Bailarina e garota-propaganda de comerciais, chegou a fazer figuração em programas infantis da extinta TV Tupi. Mas foi somente aos 16 anos de idade que a menina tímida chamou a atenção dos olhares atentos do cinema nacional. Até então, Zilda, de cabelos castanhos, estava esperando o ônibus de volta para casa, na Vila Gumercindo, em São Paulo, quando foi abordada por um homem, em frente à TV Tupi.

- Ei, menina! Você quer fazer cinema?

Ela aceitou o cartão de um produtor chamado Antônio Polo Galante, e disse que pensaria na proposta. Continuou o caminho para casa, sem dar muita bola para o convite – afinal ela não era atriz, apenas tinha feito alguns comerciais e campanhas publicitárias, mas nunca havia atuado. Chegou em casa e contou para a mãe, dona Maria Irena, o que tinha acontecido, mas não se preocupou em ver do que se tratava. Mal sabia ela que só estava adiando um futuro inevitável.

Pouco tempo depois, a sua agência entrou em contato. Havia surgido um teste para um filme e tinham se interessado pelo seu perfil. “A Filha de Emanuelle” (1980) era o nome da produção, Osvaldo de Oliveira era o diretor e Antônio Polo Galante era o produtor – sim, o mesmo homem do cartão que ela esnobou: “Eu ir para a Boca do Lixo, na rua do Triunfo? Fazer filme e ter que tirar a roupa? Eu não! Imagina!”, pensava Vanessa. No final, ela acabou conquistando um papel pequeno, de coadjuvante. Mas, por um acaso do destino, Vanessa acabou se tornando a protagonista do filme. Infelizmente, a atriz que estava escalada para o papel principal sofreu um acidente e não pôde participar das gravações. Assim, o diretor convidou Vanessa para viver Linda, e foi deste jeito torto que ela entrou para o cinema.

O filme foi um sucesso de bilheteria e levou mais de 700 mil pessoas para o cinema. Já a moça, ainda virgem, virou musa de um bando de marmanjões. Sua mãe, orgulhosa, exibia este e outros pôsteres de pornochanchada espalhados pela casa, sem a menor vergonha de mostrar a sua primogênita seminua estampada nos cartazes.

- Tinha uma tarja preta nas partes íntimas ou eu aparecia de costas, mas, mesmo assim, quem entrava em casa se impressionava: “Olha! A Vanessa” E eu lá, meio nua no meio da sala.

Já no seu segundo filme “Paraíso Proibido” (1981), desta vez com Carlos Reichenbach, interpretou Paula, uma menina de cidade do interior que se apaixonava pelo locutor de rádio interpretado por Jonas Bloch. Foi a partir deste filme que Vanessa e Carlão, como ela carinhosamente chama o cineasta, formaram uma parceria. Ao todo, foram cinco filmes produzidos pela dupla.

O primeiro ou segundo filme com Carlão, inclusive marcou um momento bem engraçado na vida de Vanessa. Menstruada, ela precisava fazer uma cena de biquíni, mas não sabia como poderia gravá-la. A solução foi correr e pedir ajuda para o maquiador Mário Lúcio.

- Ué, mulher! Bota OB!
- Eu não posso colocar o OB – confessou Vanessa, tímida.

- Como não pode? – depois de alguns minutos, o maquiador percebeu o que a garota queria dizer. – Meu Deus, você é moça! E como é que faz esses filmes? Como é que você fez essas cenas supersensuais? Você é virgem! Me explica como?
- Ah, não sei ! Eu simplesmente faço. Eu observou como as outras pessoas fazem e copio – admitiu a atriz.

Outra história que ela tem orgulho em contar é a de seu Kikito. O prêmio de Atriz Coadjuvante recebido pelo Festival de Gramado de 1987 foi consagrado pela sua atuação no filme “Anjos do Arrabalde” (1987). A estatueta, também chamada de “deus do bom humor”, fica exposta em sua casa até hoje. Claro que o diretor só podia ter sido o seu amigo Carlão. O longa também faturou prêmio de melhor filme e Beth Faria, a melhor atriz.

Mas a dupla não parou por aí. Como o profissionalismo de Vanessa além de sua beleza, sempre chamaram a atenção do diretor, ela atuou em mais outros três filmes do Carlão. São eles: “Extremos do Prazer” (1984), “Filme demência” (1986) e “Garotas do ABC” (2003), este último longa também foi seu último trabalho no cinema. Ela só aceitou por convite e insistência do amigo.

Se todos esses fatos ela conta com um sorriso no rosto, o dia em que brigou feio com o ator Wagner Maciel na peça “Beijo na boca” (1978), de Ronaldo Boschi, não é uma de suas recordações favoritas – embora talvez seja uma das mais engraçadas. Mesmo brigando com o colega de cena e estando aos prantos, quando o terceiro sinal tocou, a cortina abriu e o espetáculo começou, Vanessa se transformou em outra mulher. Ela era aquela que tinha que lidar com a homossexualidade do marido. Porém, bastava os dois voltarem para a coxia que o bate-boca e a choradeira continuavam. A melhor parte disso foi o final da peça, quando uma convidada do elenco que estava nos bastidores falou:

- Vanessa, estou totalmente passada. Você merecia um Oscar. Como é que você consegue ficar chorando e brigando com o ator e entrar em cena e fazer tudo parecer normal?

Esse fato é somente mais uma confirmação do que Galante e Carlão viram na linda menina virgem e tímida, que era capaz de esperar por horas sentada em um mesmo lugar aguardando uma ordem. Vanessa era uma profissional que levava a sério tudo que fazia. Seguia à risca as ordens e o roteiro, e possuía uma técnica de cinema invejável, como poucas atrizes tinham.

- Eu nunca tive grandes problemas, nem com diretor, nem com produtor. Não sei se é por causa do meu jeito de ser, de estar sempre na minha, sempre quieta e muito tímida. Chegava ao set hiperdecorada e com muita atenção para não errar nada. O que as pessoas pediam para eu fazer, eu fazia. Se era pra tirar a roupa, vamos tirar.

Talvez devem ser por esses motivos que a musa hoje, além do seu Kikito, mantém uma carreira estável dublando e dirigindo dublagens junto ao seu marido, Paulo Celestino Filho, e a sua amiga da época da Boca, Patrícia Scalvi. Vanessa não tem intenção de fazer TV ou teatro de acordo com ela, essas coisas ocupam muito seu tempo e ela tem paixão por dublar. Mas, fica a dica, caso apareça algum convite para o cinema novamente: “Por que não?”.


FICHA TÉCNICA
Nome completo: Zilda Cristina Alves Pinto
Nome artístico: Vanessa Alves
Data de nascimento: 4 de setembro de 1962
Naturalidade: São Paulo (SP).

Principais bilheterias da pornochanchadas:
“A filha de Emanuelle” (1980), Osvaldo de Oliveira
“A menina e o estuprador” (1982), Conrado Sanchez
“O motorista do fuscão preto” (1983), José Adalto Cardoso
“Volúpia de mulher” (1984), John Doo

Outros trabalhos relevantes:
“Anjos do arrabalde” (1987), Carlos Reichenbach
“Corruptores de la frontera” (1988), Teo Kofman
“Garotas do ABC” (2003), Carlos Reichenbach

Onde vive hoje: São Paulo (SP)

Onde faz hoje: Diretora de dublagem, dubladora e atriz.

Publicado originalmente no trabalho acadêmico Superfêmeas- as mulheres que fizeram a história da pornochanchada de autoria de Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo, publicado como trabalho de conclusão do bacharelado em jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo em 2014.



Feliz aniversário Mário Vaz Filho

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Natural de Santos, Mário Vaz Filho construiu uma carreira de respeito dentro da Boca paulista. Primeiro atuou como assistente de direção de nomes representativos do cinema paulista como Jean Garrett e Antônio Meliande. Foi um dos sócios da produtora Embrapi e prosseguiu como realizador. Atualmente, Marinho mora no centro de São Paulo e possuí diversos projetos na área do audiovisual. O VSP deseja e ele todas as felicidades nesta data especial.

Superfêmeas III: Débora Muniz

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DÉBORA MUNIZ

Luz, câmera, ação, desmaios



Por Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo.

- Rápido! Chamem o resgate!

- Mas o que aconteceu?

- A Débora desmaiou!

E assim, a emergência foi chamada ao set de filmagem de “A b... profunda” (1983). As câmeras estavam posicionadas, os técnicos prontos e a cena da vez era um momento íntimo da personagem Helena transando com três homens em uma casa de praia. A atuação impactante poderia ter permanecido para sempre na memória de Débora Muniz, a intérprete da ninfeta. Mas não foi bem assim. A única coisa que ela lembra é que a cena é linda, cheia de florezinhas que caem pelo corpo da personagem. De resto só o breu. Estava desmaiada.

O diretor do longa, Álvaro de Moya, teve um dia incomum com sua atriz desmaiada antes dele gritar: “Corta!”. Mas, para a musa, aquele foi um dia como qualquer outro. Não porque ela estava mais uma vez envolvida em um projeto e filmando uma cena, e sim porque desmaiava toda vez que precisava ficar nua para interpretar uma personagem.

Mesmo com toda a sua coragem, perseverança e amor pelo cinema, essa não foi uma cena tão fácil de ser gravada, ainda mais se tratando do primeiro filme de sexo explícito da carreira de Débora.

Fosse nesses longas ou nas pornochanchadas, apagar era o reflexo do nervoso extremo que sentia todas as vezes que precisava se despir para gravar uma cena. A cabeça entrava em parafuso e Maria das Neves de Lima, como foi batizada, lembrava-se de toda a sua trajetória desde a saída da cidade natal, Afogados da Ingazeira, interior de Pernambuco, até tudo o que tinha sofrido, feito e desfeito para se firmar como uma atriz séria.

Ainda criança, ela saiu do Nordeste do Brasil com a família e foi para Tapejara do Oeste, interior do Paraná, local onde, com sete anos de idade, descobriu o que queria fazer da vida enquanto ia para a missa de domingo com o pai. A caminho da igreja, a menina viu uma aglomeração próxima ao aparelho de televisão que era colocado todos os dias no meio da praça. Curiosa como sempre, se aproximou e viu na tela uma garota de saia colegial vermelha e blusa branca atravessando a rua. Uma simples cena de um programa qualquer abriu os seus olhos para um novo mundo. “Eu quero fazer isso aí”. Foram as palavras que saíram de sua boca diretamente para os ouvidos do pai, que não deu bola aos delírios da criança. Eles mal sabiam o que era aquilo, mas a garota colegial permaneceu sempre em suas lembranças.

Três anos depois se mudou para São Paulo e, na adolescência, a diversão máxima era cabular aula para assistir os filmes no cinema Caboclo, na Vila Matilde, zona leste da cidade. O cinema ia cada vez mais fazendo a sua cabeça e, em 1975, o filme “Efigênia dá tudo o que tem” foi a gota d`água da paixão por esse mundo. O fato de ser apaixonada por Ricardo Petráglia, o galã do filme, ajudou muito no carinho por esse longa.

A entrada para a vida artística foi pelos palcos do teatro com a peça “Dr. John e Frank”, A menina tinha 14 anos de idade e encerrou a montagem com colegas por algumas escolas na cidade. Logo depois, decidiu entrar de vez para um grupo de atores. Buscou em anúncios de jornais e, em 1975, tornou-se aluna da escola de atores de Wilson Rodrigues, na rua Riachuelo, centro da cidade. Três meses depois, reuniu-se com outros alunos e mudou para a escola de atores de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, onde aprendeu técnicas de intepretação e produção, além de ser apresentada à Boca do Lixo, em 1977.

Na Boca, encontrou um verdadeiro lar. Passava grande parte do dia por lá e em pouco tempo estrelou “A mulher que põe a pomba no ar” (1978) e “Perversão” (1979), ambos de Mojica.

Os desmaios começaram logo no primeiro filme, mesmo não sendo tão comprometedor, já que aparecia sem roupa, mas sentada em uma cadeira, contando uma história e sem mostrar muita coisa. O bicho começaria a pegar quando filmou uma cena de estupro em “Mundo, mercado do sexo” (1979). Messe, desmaiou de verdade.

Mas mesmo apagando nas cenas de nu, era presença certa em vários filmes, fosse em papéis principais ou coadjuvantes. Por passar muito tempo na Boca, era considerada filha de todo mundo e gostava de estar com a equipe técnica em momentos de descontração e mesmo durante as filmagens. Seu jeito de moleca não só rendia papéis em longas por toda a rua do Triunfo, como o conhecimento do processo de produção dos filmes, técnicas e direção.

Certa vez, no intervalo de gravação de “Perversão”, ela conversava com outros colegas do elenco quando o assunto se voltou aos ídolos de cada um. Imediatamente falou que era apaixonada pelo galã de “Efigênia dá tudo o que tem” e, para a sua surpresa, o rapaz do seu lado era ninguém menos que Ricardo Petráglia, a sua paixonite de adolescência.

- Ciganinha, eu fui a paixão da sua vida- disse ele, chamando-a pelo apelido que ganhou na Boca. Ela não sabia onde enfiar a cara de vergonha e, se tivesse descoberto antes quem era ele, provavelmente não conseguiria atuar ao seu lado. O motivo dos desmaios seria muito maior do que simplesmente a nudez em cena.

Porém, nem tudo eram flores e claquetes no início da carreira. O pai não aceitou que a filha fosse atriz, e Débora perdeu a conta de quantas vezes apanhou em casa. O senhor José dizia que ela era a vergonha da família.

Mas mesmo sem o apoio familiar, Débora seguiu em frente e sua carreira estava pegando fogo. As produções na Boca do Lixo também estavam em plena ebulição, mas a nova década que surgia trouxe mudanças para o cinema nacional que afetaram diretamente a rua do Triunfo. Os filmes produzidos nos Estados Unidos e Europa que estavam chegando ao solo brasileiro apresentavam conteúdo de sexo mais picante e completamente explícito, ao contrário do que era mostrado nas pornochanchadas. O público, é claro, preferiu essa novidade.

Sem alternativas, os produtores passaram a produzir esse tipo de filme e Débora foi convidada a estrelar essa nova vertente do mercado cinematográfico. Outras atrizes receberam o mesmo convite, mas, de todas, Débora foi a única que aceitou. Ela chegou à conclusão que, se recusasse, teria que abandonar o cinema, coisa que nem cogitava na época.

Não foi uma decisão fácil, tampouco rápida. Ela resistiu muito tempo, ignorou testes e ligações de produtores que a queriam num filme novo. Um dia a chamaram na produtora e perguntaram se ela faria. Entre muitos sim e não, deu finalmente o sinal positivo e os produtores imediatamente disseram: “Então assina o contrato”.

Foi desta maneira repentina que Débora estrelou “A b...profunda”. A Haway, produtora do longa, já sabia que ela estava balançada e providenciou tudo o que ela poderia precisar para se hospedar no Guarujá, local onde o filme foi rodado. Se dissesse sim, haveria uma mala e itens de higiene prontos, além de um cachê bastante gordo, suficiente para comprar um carro na época.

Assinou o contrato, filmou e desmaiou. Tudo no mesmo dia. Enquanto transava para obter uma cena, uma mistura de questões, que envolviam o que ela estava fazendo ali e o que tinha que fazer em seguida, passava pela sua cabeça. A família logo aparecia em sua mente, mas ela não desistiu.
Depois do seu sim à indústria pornô, a primeira vez que Débora encontrou na rua do Triunfo antigos colegas, como os produtores Augusto de Cervantes, Jean Garrett e José Mojica Marins, foi muito questionada. Com certa bronca na voz, eles perguntaram o motivo de ela ter se submetido a essa nova linha do cinema. Débora sempre tinha a resposta na ponta da língua e rebatia dizendo que fazia pornô porque nenhum deles havia dado um emprego para ela. Neste momento em que assumiu que realmente estava no pornô e que fazia coisas extremamente ousadas em frente às câmeras, sentiu que os antigos colegas a estavam vendo como mulher pela primeira vez. A menininha que havia aparecido no auge da adolescência e que tinha crescido naquele meio tinha ido embora e no seu lugar havia uma mulher forte, decidida e que faria de tudo para continuar no cinema. Fosse fazendo sexo na telona ou não, tudo não passava de trabalho. APENAS trabalho. E um tantinho de paixão também.

Mesmo desmaiando nas cenas de nu, Débora destacou-se nos filmes pornôs brasileiros até o fim da década de 80, quando deu um tempo na telona para dedicar-se à direção de filmes e ao teatro.

Em 1992, deixou o país para morar e trabalhar em uma casa de shows brasileira no Japão, onde permaneceu até 2003. De volta ao Brasil, ajudou a fundar a “Rama Kriya”, companhia teatral que se dedica à produção de peças na religião espírita.


FICHA TÉCNICA
Nome completo: Maria das Neves de Lima
Nome artístico: Débora Muniz
Data de nascimento: 26 de agosto de 1959
Naturalidade: Afogados da Ingazeira, Pernambuco.

Principais bilheterias da pornochanchadas:
“A mulher que põe a pomba no ar” (1978), José Mojica Marins
“Perversão” (1979), José Mojica Marins
“Mundo, mercado do sexo” (1979), José Mojica Marins

Outros trabalhos relevantes:
“A b... profunda” (1983), Álvaro de Moya
“Oh! Rebuceteio” (1984), Cláudio Cunha
“Gozo alucinante” (1985), Jean Garrett

Onde vive hoje: São Paulo (SP)

Onde faz hoje: Atriz integrante do grupo teatral “Ram Kriya”, especializado em peças espíritas.


Publicado originalmente no trabalho acadêmico Superfêmeas- as mulheres que fizeram a história da pornochanchada de autoria de Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo, publicado como trabalho de conclusão do bacharelado em jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo em 2014.

Prefácio do livro Dossiê Boca

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Por Fausto Salvadori Júnior

Matheus Trunk sabe que existe um mundo sem fim, repleto de histórias e mistérios, para além dos quatro cantos das telas de tablets, celulares e notebooks. Essa é uma das suas qualidades, nem sempre encontrada entre os jornalistas da geração que começou a trabalhar após a invenção do Google.

O Matheus é foda. Ele gosta de pesquisar metendo as mãos na poeira dos sebos e remexendo em arquivos amarelados atrás de filmes perdidos, edições esgotadas, revistas esquecidas e discos de vinil. Também é daqueles que curte conversar com gente. Passa horas ouvindo pessoas de cabelo branco contar histórias de tempos em que ele nem havia nascido. Entre os antigos cineastas da Boca do Lixo, tema desse livro, Matheus virou conhecido de todo mundo. Conversando com eles, volta e meia é capaz de surpreendê-los mencionando fatos, datas e detalhes que os protagonistas dessas histórias já tinham esquecido. Ao longo dos anos, foi reunindo um belo acervo de fragmentos da história do cinema, da música, do esporte e do jornalismo em São Paulo.

Matheus se meteu nessa trilha de pesquisador sem qualquer garantia de que o material reunido por ele algum dia viesse a ser publicado em algum lugar, fosse como conteúdo jornalístico ou pesquisa acadêmica. Faz isso simplesmente porque ama esses temas e quer conhecer mais e mais sobre eles. Amor e sede de conhecimento: não são essas as bases de toda busca que vale a pena?

Outra qualidade de Matheus é o olhar voltado para todas as pessoas que fazem história, especialmente para aquelas que ficam nos bastidores, fazendo tudo acontecer longe do aplauso público. Ele tem o olhar do “operário que lê” do poema de Bertolt Brecht, aquele que se indignava lendo os textos que retratavam os acontecimentos como uma sucessão de feitos praticados por semideuses solitários. “O jovem Alexandre conquistou as Índias. Sozinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?”, perguntava o operário do poema. Este operário provavelmente teria a mesma reação diante de muitos textos escritos sobre história do cinema, que parecem enxergar apenas as figuras dos diretores e dos atores principais. “Glauber Rocha filmou ‘Terra em Transe’. Não precisou nem de um eletricista?”

Quando escreve sobre cinema, Matheus abre espaço para as histórias de técnicos, atores coadjuvantes, roteiristas, diretores esquecidos. Foi o que fez em seu primeiro livro, O Coringa do Cinema, sobre o técnico Virgílio Roveda, e é o que faz neste livro. Aqui, a gente dos bastidores é quem sobe ao palco. Os protagonistas de sempre, como José Mojica Marins e David Cardoso, passam a entrar como coadjuvantes para falar da vida de figuras como Giorgio Attili e Walter Wanny.

Com seu gosto pelas histórias dos anônimos e esquecidos, faz todo sentido que Matheus goste tanto do cinema semiartesanal e independente feito em São Paulo entre os anos 70 e 80, no quadrilátero docemente batizado de Boca do Lixo, atual Cracolândia. Embora criticada de todos os lados, especialmente pelos cineastas e críticos mais intelectualizados, a Boca foi uma das mais fascinantes experiências de cinema feito pelas classes populares.

Na Boca paulista, o sonho de fazer cinema virou realidade para muita gente que não tinha dinheiro nem educação formal. Suas histórias estão nesse livro. Histórias de um peão de boiadeiro que conseguiu fazer seu próprio filme sobre os rodeios, de um faxineiro de cinema que se tornou cineasta, de atores que eram contratados no mesmo bar onde comiam fiado ou de um garçom que se tornou o maior montador de filmes da história do Brasil.

Histórias como essa só podiam ter acontecido na Boca do Lixo, quando fazer cinema era barato – e assistir também. Trabalhando com pouco dinheiro, sem financiamento estatal ou renúncia fiscal, toda essa gente dependia do resultado das bilheterias para poder comer. E quem pagava pelos filmes era um público de baixa renda que tinha o mesmo perfil dos que faziam os filmes. Um cinema feito do povo para o povo.

É como se, em plena ditadura militar, muitos anos antes da chegada dos governos democráticos que tiraram milhões de brasileiros da miséria, o cinema da Boca já estivesse promovendo o seu projeto de ascensão para um grupo de brasileiros originalmente destinados a coadjuvantes do quadro social.

Uma ascensão que, para muitos, foi feita mais de sonho do que de dinheiro. Ao longo das páginas do livro, é melancólico ver como muitos personagens não conseguiram mais prosseguir em suas carreiras depois que a Boca do Lixo fechou as portas e o cinema tornou-se uma indústria bem mais elitizada. Os sobreviventes da Boca, contudo, não desistem. Em seus depoimentos, estão sempre cheios de projetos: podem não ter dinheiro, mas têm roteiros que um dia serão filmados, livros que um dia serão escritos, filmes inéditos que um dia serão lançados.


Podem ser ilusões, mas são as suas ilusões. Cada um do seu jeito, os personagens da Boca parecem ter seguido a sugestão dada a Orson Welles para Ed Wood, destinado a se tornar o pior cineasta do mundo, no filme de Tim Burton: “Vale a pena lutar pelos seus sonhos. Por que passar a vida realizando os sonhos dos outros?”.

Superfêmeas IV: Nicole Puzzi

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 NICOLE PUZZI
“Eu amava aquele ambiente. Eu amava...”.



Por Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo.

- Coloca o som e o microfone ali no meio das duas camas, porque capta o som da voz das duas. Vai captar bem, mesmo quando elas pularem de uma cama para a outra. Se pegar o barulho da cama a gente dubla, mas vai captar bem o som. Coloca o som aqui, bem no meio das duas camas.

Algum tempo depois de tudo ter sido preparado:

- Está tudo bom? Som?- pergunta o diretor.

- Perfeito !

Começa a filmagem. Nicole Puzzi de um lado. Monique Lafond de outro. As duas começam a pular de uma cama para a outra apenas de babydolll. De repente, olham pra baixo e...

- O que é isso? Com esse cara aqui embaixo eu não filmo!- esbraveja Nicole.

- Como? Cadê...Seu filho da puta! Você acha que aqui é lugar de...

- Mas o senhor me mandou colocar o som aqui.

- O som! Eu mandei colocar você? Você quer desrespeitar as minhas atrizes?

Sem saber o que fazer, o assistente sai debaixo da cama, onde tinha se escondido “estrategicamente” para segurar o microfone, e pede desculpas. Mil desculpas. Em seguida pede substituição. Nicole e Monique não deixam. A lição já tinha sido aprendida. Nunca mais ele voltaria a cometer abuso desses.

Nicole lembra-se disso com um sorriso no rosto. Mas nem toda confusão deixou boas lembranças. Certa vez, entre 1978 e 1979, uma mulher deu um soco na atriz sem razão aparente.

- Ela me viu. Ela veio com um ódio tão grande e me deu um soco. E eu não entendi. Ela sabia quem eu era. Sabia o meu nome. Sabia tudo. Então, começou a me xingar. Eu era meio foda...Eu ia matar aquela mulher porque eu era meio fodona mesmo. Mas aí me seguraram e ela correu. Se eu pego ela, teria machucado muito e talvez fosse me arrepender depois.

Nunca entendeu direito o que aconteceu. Como a mulher sabia quem ela era e o motivo da bronca.

- Meus filmes eram censurados. Não passava na TV e eu não era conhecida na TV. De que outro jeito ela sabia quem eu era?

Nicole era cabeça quente, desbocada e...Sincera. Apaixonadíssima pelo cinema produzido na Boca do Lixo. Apaixonada pelo trabalho Antônio Polo Galante, Walter Hugo Khouri, Jean Garrett, entre outros famosos diretores da pornochanchada. Era tão apaixonada que sua carreira na rua do Triunfo começou antes que o tempo permitisse. Ainda não havia completado 18 anos de idade quando a jovem Nicole começou no filme “Possuídas pelo Pecado” (1975). A estreia só foi possível graças a um homem que zanzava pela Praça da Sé prometendo a todos que “tirava documentos”. Esse ato de ousadia lhe rende broncas até hoje de David Cardoso, ator conhecido como “Rei da Pornochanchada”, e seu primeiro diretor.

A partir daí, foi um filme atrás do outro. E poderiam ter sido muito mais, pois, segundo Nicole, ela recusou mais produções do que fez. Embora tenha, como diz, “aptidão para papeis dramáticos”, os diretores adoravam coloca-la como ninfeta, mesmo após seus 24 anos de idade. A atriz mexia com a imaginação dos homens mais velhos que enxergavam nela uma doce sensualidade. De todas as personagens que fez, a que mais marcou a sua carreira sem dúvida foi Ariella: uma jovem órfã, herdeira de uma grande fortuna, mas que sofria nas mãos de seus pais adotivos, que desejavam a sua herança.

Mas nem só de atuação vivia Nicole Puzzi. Curiosa e cismada de que tinha que conhecer de tudo e mais um pouco da vida, ela se interessou por Nietzsche, trabalhou como enfermeira, cursou Direito e tinha um fascínio pelo comportamento do ser humano. Agora, quer ver o lado de atriz de Nicole falar mais alto? Faça uma crítica sobre a pornochanchada ou critique seus colegas de profissão.

- Essas coisas são apontadas com o dedo do preconceito. Era o gênero do povinho, diziam da pornochanchada na época. Coisas que as gentinhas, vamos dizer assim, faziam. Todo mundo queria fazer sexo, mas empurravam a culpa para nós, como se fossemos os culpados, os responsáveis.

Certa vez, estava em um salão de beleza se preparando para gravar e, do nada, “uma mulher mal resolvida”, como diz Nicole, sem mais nem menos começou a falar das atrizes da pornochanchada:

- Por que toda atriz de cinema é puta?

A mulher questionava a todos do salão em voz alta, deixando o cabelereiro, que não sabia onde se escondia, olhando para Nicole sem saber o que fazer. Depois de um tempo, sem poder aguentar mais, Nicole respondeu em alto e bom som.

- Porque a gente faz exatamente aquilo que você faria se estivesse no seu lugar.

Silêncio. Um pouco depois o silêncio virou simpatia. Que virou camaradagem por parte da mulher. Até que ela ousou mostrar umas fotos mais picantes que havia tirado para o namorado. “Fotos ridículas e tiradas em um motelzinho de quinta”, de acordo com Nicole, que fez questão de mostra-las ao salão todo, é claro.

Os diretores, atores e outros personagens da Boca a amavam. O seu jeito esquentado e sincero conquistou Walter Hugo Khouri. O diretor fazia questão de tê-la em quase todo filme que dirigia, tornando-a uma de suas musas – talvez a principal. Khouri praticamente criou uma personagem justamente para ela em “Eu” (1987). No longa, Nicole vive Lila, uma das várias mulheres que não resistem aos encantos de Marcelo, um milionário tarado interpretado por Tarcísio Meira. Nessa obra, Nicole recebe mais espaço para mostrar o lado dramático – seu último trabalho antes de ir para a televisão.

No entanto, antes de atingir o status de musa da pornochanchada, Nicole largou a ideia de ir para um colégio de freiras aos 14 anos de idade, simplesmente por que tinha na cabeça que não queria casar. Viveu uma vida, que segundo ela, foi diferente do normal.

- Eu tinha uma família de mentalidade mais tradicional, mas uma família espetacular. Aí eu me torno atriz de pornochanchada. Por quê? Porque resolvi ser rebelde. Aí confronto uma porção de coisa em mim mesma e nos outros. Tomo um caminho difícil. Eu sempre soube que ser atriz de pornochanchada naquela época ia ser terrível.

E foi durante uma conversa com sua família que Nicole escutou o que precisava para sair do Paraná, tomar o seu rumo, conquistar a carreira nos cinemas e seguir para São Paulo:

- Você vai quebrar a cara, minha filha- disse Orlando Ferreira, pai de Nicole, quando descobriu o que filha queria fazer – Você vai quebrar a cara; Você escolheu uma coisa que vai ser muito dura pra você.

Nicole olhava, esperando ser expulsa de casa.

- Você vai quebrar a cara e tem uma coisa: quando você quebrar a cara...

“Fodeu!”, pensou Nicole, assustada. Seu Orlando continuou:

- Quando você quebrar a cara, você volta aqui para o pai, que o pai vai te ajudar a catar os cacos. Vai viver a tua vida, mas eu estou aqui.

Os anos de ouro da pornochanchada e da rua do Triunfo passaram. As idas ao boteco para comer pão com mortadela junto ao elenco depois de cada gravação – ou melhor, Nicole, vegetariana desde aquela época, pedia queijo ou comia pão puro – também passaram, mas não impedem Nicole Puzzi de seguir sonhando com um merecido reconhecimento da parte do público para com as obras que participou. Também para com os diretores, atores e amigos que fez lá na Boca do Lixo.

- Olha, eu vivi bem por que eu acho que amava aquele ambiente. Só viveu mal quem ia viver mal em qualquer lugar. Eu amava aquele ambiente. Eu amava.

FICHA TÉCNICA



Nome completo: Tereza Nicole Puzzi Ferreira
Nome artístico: Nicole Puzzi
Data de nascimento: 17 de maio de 1958
Naturalidade: Floraí, Paraná.

Principais bilheterias da pornochanchadas:
“Possuídas pelo pecado” (1976), Jean Garrett
“Dezenove mulheres e um homem” (1977), David Cardoso
“Escola penal de mulheres violentadas” (1977), Antônio Meliande
“Pensionato das vigaristas” (1977), Osvaldo de Oliveira
“Reformatório das depravadas” (1978), Ody Fraga

Outros trabalhos relevantes:
“Ariella” (1980), John Herbert
”Gabriela” (1983), Bruno Barreto
“Eu” (1987), Walter Hugo Khouri
“Barriga de aluguel” (1990/91), novela Rede Globo
“A Boca de São Paulo” (2013), livro de sua autoria
“Pornolândia” (2014), programa Canal Brasil.

Onde vive hoje: São Paulo, capital
O que faz hoje: Ativista, assistente social, apresentadora e atriz.


Publicado originalmente no trabalho acadêmico Superfêmeas- as mulheres que fizeram a história da pornochanchada de autoria de Bianca Bellucci, Heros Macedo, Heverton Bruno, Larissa Palmer, Renata Rocha e Tamires Camargo, publicado como trabalho de conclusão do bacharelado em jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo em 2014.

Papo de Boqueiro com Virgílio Roveda

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O diretor de fotografia Virgílio Roveda, o Gaúcho (Vacaria, RS, 02/08/1945-) é o entrevistado da primeira edição do programa Papo de Boqueiro. Ele trabalhou em mais de 60 longas-metragens nacionais nas mais variadas funções. Um autêntico coringa da Boca paulista.

Papo de Boqueiro com Castor Guerra

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O ator Castor Guerra (São Paulo, 1951-) iniciou sua carreira na rua do Triunfo com o ator e produtor Tony Vieira. Trabalhou com Mazzaropi e em diversas produções paulistas. Guerra atuou em mais de 40 longas-metragens nacionais.

Papo de Boqueiro com Walter Wanny

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O montador Walter Wanny (Taciba, SP, 08/08/1946-) é o recordista em sua área profissional. Waltinho montou mais de 95 longas-metragens dos mais variados gêneros na Boca paulista. É um dos técnicos mais importantes da história do cinema brasileiro.

Papo de Boqueiro com Valter José

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O cineasta, filósofo e jornalista Valter José conheceu de perto o período final da Boca paulista. Nesse programa ele analisa a produção do cinema adulto da rua do Triunfo.

Papo de Boqueiro com Gio Mendes

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O jornalista Gio Mendes está escrevendo a biografia do polêmico cineasta, ator e produtor Sady Baby.

Eder Mazzini (1950-2016)

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Namorei uma menina que tinha família no interior. Sempre que ia pra cidade dela eu passava por Catanduva (“cidade feitiço”). Sempre que passava por lá lembrava: “Poxa, ainda não entrevistei o Eder Mazzini”.
Eder Mazzini (1950-2016) nasceu em Catanduva e nunca quis me dar entrevistas. Chegamos a conversar várias vezes. Era montador de prestígio na Boca paulista. Grande companheiro do Carlão Reichenbach. Lembro que encontrei Eder no velório do Carlão no MIS. Acho que ele deve ter ficado o tempo inteiro do velório junto com a família do Reichenbach. Mazzini era branco, magricela e usava óculos. Sempre muito educado. Mas naquele dia estava devastado. Estava mais branco que o normal e fumava um cigarro atrás do outro. “Agora quem sabe eu possa te dar a tal entrevista. Eu falava com o Carlão todo dia”, admitiu. Os dois tinham sido sócios da produtora Embrapi, uma tentativa de profissionais da Boca tornarem-se produtores independentes. Eder ficou inclusive dono das produções da empresa. Tentei diversas vezes fazer que ele vendesse os filmes pro Canal Brasil: “Eram dez sócios, vai dar o maior rolo isso. Deixa pra outra hora”.
Eder veio do interior para estudar engenharia. Parece que não saiu-se muito bem nessa parte. Acabou caindo na rua do Triunfo. Ali trabalhou como assistente de montagem de algumas pessoas, inclusive do Walter Wanny. Quando começou a montar não parou mais. Montou filmes de praticamente todos os grandes diretores da Boca como Ody Fraga (O Sexo Mora ao Lado), Cláudio Cunha (O Gosto do Pecado, Oh Rebuceteio!) Jean Garrett (A Força dos Sentidos, Karina, A Mulher que Inventou o Amor, A Noite do Amor Eterno), Fauzi Mansur (O Inseto do Amor), Walter Hugo Khouri (Paixão Perdida, Amor Estranho Amor, Forever, Amor Voraz) e Luiz Castellini (Tara-Prazeres Proibidos e A Reencarnação do Sexo). Mas parecia ter um carinho todo especial para os filmes que montou de Reichenbach. Talvez sejam os trabalhos mais representativos de Carlão como diretor: Amor, Palavra Prostituta (1982), Extremos do Prazer (1984), Filme Demência (1986) e Anjos do Arrabalde(1987).
Convidei Eder pra dar seu depoimento para a série Papo de Boqueiro. Ele nem me respondeu. Encontrei-o pela última vez na segunda-feira da semana passada numa sessão de 30 anos do filme Um Pistoleiro Chamado Papaco de Mário Vaz Filho. Mais uma vez me disse: “Estou aposentado, sossegado. Não vou te dar entrevista”, disse meio rindo.

Eder foi um dos grandes técnicos da Boca. Um amigo me confidenciou: “Muita gente não gostava de montar com o Eder porque ele não fazia simplesmente o que o diretor queria. Tentava botar um traço autoral no seu trabalho”. Talvez por isso Eder não tenha sido tão chamado para trabalhar em seu ofício após o fim da Boca. Ele merecia ser mais lembrado. Mas vivemos no Brasil e vai ser difícil algum veículo da grande mídia lembrar dele. Triste.

Papo de Boqueiro com Mário Vaz Filho

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O cineasta Mário Vaz Filho (Santos, SP, 14/05/1947-) começou na rua do Triunfo em 1979. Trabalhou como assistente de diversos realizadores e teve uma parceria com o diretor Jean Garrett. Foi sócio da Embrapi e prosseguiu sua carreira durante o período explícito.

Papo de Boqueiro com Dalete Cunha

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A montadora Dalete Cunha (São Paulo, SP, 18/10/1949-)  tornou-se um dos principais nomes da edição de som do cinema paulista. Ex-esposa do montador Roberto Leme, ela relembra trabalhos na produtora Cinedistri da família Massaini e da parceria com diretores como Anselmo Duarte, Fauzi Mansur e Sílvio de Abreu.
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